Meu pai, os lutos e aprendizados

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Um pai, avô, tio, marido, irmão, pastor, uma despedida onde cabem muitas despedidas. Uma filha e a despedida do pai. Um neto e a importância de participar dos rituais, de compreender a morte como consegue. Um avô que pode ficar, na voz e nas fotografias, “há alguns dias Theo me pediu uma foto para deixar no quarto e para ouvir a voz do avô, por que ele disse que não queria esquecer.” Não quer e não precisa esquecer, assim é o amor, ele fica.

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“A vida toda nos acostumamos a viver em volta dele, nunca nos afastamos, mesmo na pandemia.”

É difícil ser sucinta ao falar sobre meu pai, se existiu alguém multifacetado e peculiar foi ele. Pai, vô, tio, marido, mano, pastor Marcos, Marcão, filho. Tantos papéis, tantos lutos diferentes. A vida toda nos acostumamos a viver em volta dele, nunca nos afastamos, mesmo na pandemia. Com muito respeito ao vírus, sem menosprezar a pandemia, continuamos nos encontrando e nos amando.

2021 já começou de um jeito estranho. Dia 13/01 meu médico ligou dizendo que eu estava com anomalias e precisaria de mais exames, o que se converteu em duas cirurgias pra retirada de um câncer. O câncer se revelou muito inicial e não invasivo e na primeira semana de maio eu tive alta médica. Lembro da Paz e da sensação de alívio.

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“Meu filho mais novo tem pré-diagnóstico de Asperger, com ele aprendemos a colocar tudo na linguagem e nunca esconder nada”

Durante todo o tratamento meus pais estiveram comigo. Nas cirurgias, ficaram com o meu filho mais novo (então com 6 anos), que tem pré-diagnóstico de Asperger, com ele aprendemos a colocar tudo na linguagem e nunca esconder nada, explicando da forma mais honesta e sincera.

Estávamos preparados para tudo, menos para o que se iniciou em 22/05. Minha avó, teve cistite e foi hospitalizada. O primeiro diagnóstico foi o dela e não parou mais. Foi o pior pesadelo da minha vida. O exame do meu pai, deu negativo. Não sei se pelo choque, se por tudo que estava acontecendo, não insisti em outro exame, não alertei minha mãe e mesmo com todo mundo ficando doente, ele confiava naquele negativo e na falta dos sintomas habituais.

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“Não tinha febre, não tinha falta de ar, a tosse seca que era normal nele não nos alarmou e nem a ele. No domingo a febre chegou.”

Não tinha febre, não tinha falta de ar, a tosse seca que era normal nele não nos alarmou e nem a ele. No domingo a febre chegou. Dia 01, o exame positivo, 60% do pulmão afetado e dia 2, a internação. Não me deixavam ir lá, tinham medo da minha imunidade pós radioterapia. Na manhã do dia 07, minha avó faleceu.

Meu pai era pastor e muito conhecido no meio presbiteriano. Fizeram uma homenagem pra minha avó e marcaram ele. Entramos em pânico, foi a primeira vez que entrei na UTI. Precisávamos saber se ele tinha visto. Do primeiro diagnóstico, até o dia que meu pai se foi, eu não existia pra ninguém. Como jornalista, fui a fundo na pandemia e uma das coisas que eu sabia era: depois que inflama, não existe prognóstico e meu pai estava inflamado.

Durante todo primeiro semestre, acabei me concentrando em me curar e depois em ajudar a família. Não tinha cabeça pra nada e nem pra ninguém. Lidar com ele, todos os diagnósticos e prognósticos (fomos 16 contaminados), me exauria.

A partir da segunda semana, após muita briga, minha mãe fez o exame e deu positivo, meu filho mais velho e minha sobrinha, que mora com eles, também. Estavam muito bem e quase sem sintomas, mas o medo me consumia sem filtros dentro de casa. Estava definhando emocionalmente.

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“Sobre a mesa da sala, no cantinho dele… Nunca vou esquecer o vazio que gritava.”

Dois dias antes da intubação, meu pai teve uma melhora absurda, nos enchendo de esperanças. Conseguiu sentar, comer, a voz dele ao telefone era mais firme e chegou a responder minhas mensagens, mas aí veio a tal tempestade citoquina e ele não suportou. Minha mãe foi autorizada a ir e pegar os pertences dele.

Na segunda fui ao hospital e de lá, pra casa dela. Ali, caiu a primeira ficha. Sobre a mesa da sala, no cantinho dele estava o notebook, o celular, os óculos e o aparelho auditivo arrumadinho, nas costas da cadeira a jaqueta dele. Nunca vou esquecer o vazio que gritava.

Sai de lá e desmontei, foi a primeira vez que falamos sobre ele morrer na frente do Theo. Eu só chorava e meu filho não sabia o que fazer pra que eu melhorasse. Eu explicava e explicava e, a cada vez que ele perguntava, isso me destruía. A morte pra ele não era abstrata. Em 2019 tínhamos perdido a Nina, nossa cachorrinha. Ela foi internada e nunca voltou. Eu não fazia ideia de como isso o consumia. Pra ele cristalizava a ideia de que quem ia ao hospital morria.

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“Eu estava tão esperançosa que, na segunda, fui dirigindo sozinha. Tinha entrado em choque séptico.”

Domingo seguinte, entrei na UTI e o médico plantonista chegou a falar em extubar. Temos a certeza que meu pai tinha um certo nível de consciência, porque sempre que alguém falava com ele, os batimentos mudavam. Theo pediu pra subir, mas não tivemos autorização.

Eu estava tão esperançosa que na segunda, fui dirigindo sozinha. Quando encontrei com o médico meu mundo caiu. A febre tinha voltado, o rim tinha parado e ele estava já sem oxigenação nas extremidades, tinha entrado em choque séptico.

Eu não conseguia informar minha mãe. Minha tia paterna foi pessoalmente. Eu me despedi do meu pai. Foi a coisa mais difícil e dolorosa de fazer. Falei sobre amor e cuidado, sobre como nós sabíamos que tínhamos sido amados, que eu não brigaria com Deus e nos manteríamos unidos como ele gostava e, enquanto eu falava, com uma calma sobrenatural, os batimentos do meu pai, se normalizaram. Foram os trinta minutos mais dolorosos e preciosos que já vivi.

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“O enterro foi rápido e caixão lacrado. Meu pai não cabia nisso, era inacreditável “

Entrei no carro, ainda em choque, e voltei pra casa sem dar uma palavra. Pedi orações e, quem sabe um milagre, mas eu sabia que ele estava partindo. Quando fui colocar meu filho pra dormir, lemos a Bíblia. Falei sobre o que estava acontecendo e pedi que ele orasse para que Deus me desse força e tomasse conta do vovô.

Perto da meia noite, eu estava angustiada, mandei um email pra Deus (é assim que faço com as orações sérias), dizendo que eu sabia que meu pai viveu uma vida maravilhosa e estava pronto (ele sempre repetia isso desde a bariátrica), mas que Ele me desse paz e foi o que recebi. Exatamente à 1h40 minha mãe me ligou e disse “filha, ele se foi”. Meu pai, tinha voltado pra casa. Não dormi mais, as 5h acordei meu marido e o Theo, lembro de dizer: “filho, vovô foi com Jesus, ele agora vive no céu”.

O enterro foi rápido e caixão lacrado. Lembro pouco, mas lembro que meu pequeno insistiu que comprássemos flores vermelhas, que ele colocou sobre o caixão, tão singelo e vazio. Nessa hora percebemos que o nosso tamanho, tem o tamanho da vida que inventamos pra nós, do amor que despertamos, das experiências que vivemos, da família que criamos, e ele, não cabia nessa cena. Meu pai não cabia nisso, era inacreditável.

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“O pior vem depois, onde tudo dói e você não faz ideia se vai sobreviver, por que é solitário, doloroso e único para cada um.”

A vida toda, imaginei que meu pai teria um velório lindo e lá estávamos, só os íntimos. Assim que minha mãe me ligou, na madrugada, fiz um post com uma foto dele, sorrindo e escrevi: “quis o Senhor, levá-lo pra casa. Meu pai combateu o bom combate, terminou a carreira e guardou a fé, hoje recebeu a coroa da vida eterna. Bendito o nome do Senhor pela esperança do reencontro”. Os comentários das pessoas contavam coisas que ele havia feito pelos outros e sobre como ele tinha orgulho da gente, histórias que jamais imaginei. Isso me consolou. Foi o velório dele.

O pior vem depois. Foram semanas burocráticas infernais, onde você vira o filho do falecido. Onde você acorda chorando e tem que lidar com o seu luto, da criança, do marido, da minha mãe e dos irmãos. Onde segue a distribuição de lembranças, onde tudo dói e você não faz ideia se vai sobreviver, por que é solitário, doloroso e único para cada um.
Há alguns dias Theo me pediu uma foto para deixar no quarto e para ouvir a voz do avô, por que ele disse que não queria esquecer. Mudamos de cidade, Theo, depois de uma internação ano passado, entendeu que hospital salva.

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“Aprendi aqui que não preciso me obrigar a esquecer esse amor, estou aprendendo a amá-lo, com um céu de distância.”

Tem sido um aprendizado diário lidar com nossos lutos e vazios. Hoje em dia, ao me ver chorando ele me abraça e conversa sobre o avô. Isso significa muito, é o único disposto afinal a ouvir todas as histórias que ainda precisamos ressignificar. Inseri-lo em todo contexto foi essencial.

Domingo dia das mães, fez um ano do nosso último almoço todos juntos, nós nos reunimos na minha mãe e ficamos contando histórias dele. Demos boas risadas, ele era divertido e feliz.

Quanto a mim, ainda acordo às vezes com a voz dele, do jeito que ele falava no WhatsApp, “minha filha, bom dia…” e é então que o peito ainda dói. Aprendi aqui, que posso amá-lo assim, que não preciso me obrigar a esquecer esse amor, então estou aprendendo a amá-lo, com um céu de distância.

Autoria: Pathylia Poyatos

@pathylia

@lacoselutos_

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