(Autoria: Luciene Carneiro Walter)
“No dia 15 de dezembro de 2020, as 10 horas meu pai saiu de casa, pulando o muro como um pivete — o que não era de seu feitio aos 71 anos. Dia 20 foi meu aniversário, chovia tanto, chovia mais que minhas lágrimas de desespero porque ele estava molhado….passei o dia do meu aniversário a base de calmante. Pensei, sem raiva ou magoa, que papi havia ido “ser feliz” e que um dia receberia uma carta dele contando sobre quanto sentiu minha falta. O combinado era tão claro: “Passar na esquina pra me levar pra outro bailão….” É mais do que óbvio desde sempre, foi você quem me ensinou: “eu sem você não sei nem chorar, sou barco sem mar, um pranto sem dor…”
Dia 05/03/21 ele foi encontrado, ele havia se matado. Sei que não se tratou de coragem ou covardia, foi desespero, dor imensa! Por que não me contou? Acredito que seja uma dor tão grande que não encontra palavra alguma… Será que imaginou a falta que faria? E as nossas caipirinhas, o frango com polenta, a cantoria, pra quem pedirei benção???? E você agora, né Wilson? Sem rebater e insistir que estou errada, muito menos revirando o olho e repetindo: “Luciene sem drama minha filha, não complique, descomplique…” E agora, não sou e nunca mais serei tão mais parecida com ninguém, papi, sobrevivi a tantas mortes, mas no seu caso, não há como sobreviver, decidi Viver!
“O suicídio não é um ato de coragem ou de covardia! Não é possível sentir o que outro sente, o sofrimento e a dor que faz com que uma pessoa interrompa sua própria vida é imensurável e inimaginável.”
Nasci no mesmo dia em que você e fiquei dentro do seu saquinho aguardando a triunfal estreia, portanto não tenho a mínima ideia de como será sem você, sem nossas risadas, brigas e discussões e piadinhas “só para criar um clima” que apenas nós entendemos e achamos graça… nossas trocas, discórdias, concordâncias e tanto amor que exprimíamos em palavras, no silêncio e em olhares…
“Tal tema sempre me inquietou e durante a faculdade busquei com afinco compreender “essa dor”; presenciei três tentativas de suicídio de uma pessoa próxima e querida; na última vez fez lavagem estomacal e ficou por dois dias internado, se recusou a receber nossas visitas. Sua primeira frase sobre o assunto: — “Nem para morrer eu sirvo…Nem me matar consigo!” Foi possível sentir em sua voz toda angústia do fracasso em acabar com uma dor imensa que lhe tomava o ser…
A psicanalista Arminda Aberastury diz que ninguém quer morrer, nem mesmo o suicida! Na verdade o desejo é acabar com uma dor imensa, mas para isso, é necessário acabar com o todo… para dar fim a tamanha dor põe-se fim a própria vida. Confesso que sequer imaginei, há alguns minutos atrás, estar escrevendo, nesse momento de minha vida, sobre esse tema. Há pouquíssimas semanas, em alguns poucos dias, tenho coragem de olhar minhas “lembranças do face”… hoje foi um destes dias.
Minha prima Claudia repetia insistentemente: “A ignorância é uma benção”; sempre concordei com sua frase mas, nesses longos meses “sinto na pele, todos os dias, a verdade dessas palavras!” “Tudo tem seu preço”, me ensinou papi! O preço de “saber sobre” é um vazio sem esperanças vãs e a impossibilidade de ignorar fatos. “Saber sobre”, em alguns casos, dói muito!
O suicídio não é um ato de coragem ou de covardia! Não é possível sentir o que outro sente, o sofrimento e a dor que faz com que uma pessoa interrompa sua própria vida é imensurável e inimaginável.
Importante salientar, como menciona Karina Okajima Fukumitsu em suas palestras, que não devemos usar o termo ‘cometer’: “fulano cometeu um assalto”, “sicrano cometeu um crime”; sendo portanto o verbo “cometer” remetido a um ato criminoso! O suicida não é um criminoso, seu ato acaba por esparramar sua dor aos seus familiares e amigos, mas isso não é um crime.
“O que seria prevenção ao suicídio? Não minimizar a dor do outro; não fazer piadas sobre os sofrimentos alheios. Dor dói e ponto! “
Papi se matou o que em mim causou dor, ódio por me abandonar, culpa por não ter percebido qualquer sinal que faria isso. Nos relatos de caso que li e estudei ao longo desse anos, desde a faculdade, o sentimento descrito pela família sobre o “egoísmo daquele que se mata”, me era percebido apenas como um dado teórico pois, não conseguia entender nem concatenar essa sentimento repetido na fala dos familiares; hoje a compreendo muito bem; “papi foi um egoísta, não pensou na mami doente ou em mim; ele nos abandonou!” Essa frase é muito sincera e vem sempre acompanhada de muito ódio ou/e culpa por sentir, pensar e ter até a audácia de escrevê-la!
Me parece que toda confusão de sentimentos que levam o sujeito a matar-se ficam como herança para seus familiares — esse ponto é apenas uma suposição que surgiu nesse exato momento; é relevante o curto tempo do suicídio de papi (6 meses) e o fato de seu corpo ainda não ter sido liberado do IML, não pudemos realizar qualquer ritual de despedida, o que torna a elaboração de luto, que por si já é confusa, ainda mais confusa…
O QUE SERIA PREVENÇÃO AO SUICÍDIO?
Não minimizar a dor do outro; não fazer piadas sobre os sofrimentos alheios. Dor dói e ponto! Os motivos que martirizam o outro podem nos parecer pequenos, “bobos e banais” e suas insistentes reclamações soam como um “mimimi”… Todos bem sabem que “só não há solução para a morte” e “as pessoas gostam de reclamar”! Obviamente sabemos a solução para quase todos os problemas de quase todas as pessoas! Pois, o problema não é nosso; não dói em nossa própria carne! “Só o dono da dor sabe o quanto dói”, dizia o Filósofo Meu Papi — essa frase é uma das grandes contribuições que deixou!
“Na maioria dos dias e horas o espero chegar do mercado, da lotérica, da caminhada, em outras me angustio e sofro por não saber aonde foi e o porquê demora tanto. São raros os momentos em que realmente “sei que se matou”!”
O suicídio ainda é um tabu, mesmo que estudiosos tenham conquistado a fórceps espaço para falar sobre o assunto a toda sociedade. Ainda é preciso desmistificar os discursos simplista: “Suicídio é covardia”; “A pessoa quer chamar atenção”; “Tanta gente querendo viver, doente em uma cama, e uma pessoa se mata? Ninguém tem esse direito.” E nesse absurdo tempo da Pandemia do COVID, em que tantos morrem e tantas famílias sofrem, é “tentador” ter como “uma verdade absoluta” não haver qualquer motivo ou sofrimento plausível para que alguém tire sua própria vida! Quem o faz é um ingrato, pecador…
Não se iludam, ainda tenho muitos momentos de ódio de papi! Não compreendo seus motivos, e, ainda me sinto abandonada por ele, ao mesmo tempo o amo muito e sinto tanto a sua falta… Na maioria dos dias e horas o espero chegar do mercado, da lotérica, da caminhada, em outras me angustio e sofro por não saber aonde papi foi, e o porquê demora tanto. São raros os momentos em que realmente “sei que papi se matou”!
Há vários meses não conseguia escrever e nesse momento sinto muito orgulho de mim! Não houve nenhuma lágrima ou tristeza ao elaborar esse texto; após tantos meses, enfim, escrevi por necessidade! Precisava colocar em palavras minha eterna busca por “Mais Amor…mais amor ao próximo, ao distante, ao igual, ao diferente, aos felizes e aos que sofrem… Mais respeito a dor do outro!”
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