(Autoria: Anna Penido)
O diagnóstico, a dor de imaginar como seria a vida sem Gilberto, a roupa cortada, a certeza da incompletude, nada será como antes, nem seria justo com esse amor que assim fosse. A passagem mágica, a entrega, não há reconciliação com a doença que o leva mas, sim, um abraço imenso no acolhimento do destino. Ficam os cabelos grisalhos como uma reza que fala das profundidades, fica um ramo de primavera que faz parte do corpo e da alma, ficam sementes que brotam em torno do vazio, fica Gilberto, para sempre, tatuado no coração de Anna.
“Meu luto começou quando descobri que meu marido, o jornalista Gilberto Dimenstein, tinha câncer de pâncreas. O diagnóstico me atravessou a alma junto com uma infinidade de pensamentos inevitáveis. Já naquele momento, comecei a sentir a dor de imaginar o que seria a minha existência sem ele.
Poucas semanas depois, fui a uma terapia de constelação familiar em busca de recursos para lidar com o que me aguardava. Éramos um grupo de cerca de 20 pessoas. O terapeuta me pediu que escolhesse três delas para representar a mim, o meu marido e o diagnóstico. Os escolhidos começaram a interagir e, em um dado momento, o terapeuta me sugeriu tomar o meu próprio lugar na representação. Queria que eu abraçasse a pessoa que fazia as vezes de diagnóstico. Juro que tentei, mas tremia de pavor e não conseguia fazer o que ele me solicitava. Até que a minha companheira de representação me disse que não se via como diagnóstico, mas sim como destino. Aquela mudança semântica transformou a minha relação com o que estava nos acontecendo. Eu não tinha como me reconciliar com a doença que poderia levar o meu marido, mas era capaz de abraçar o destino ao compreendê-lo como um desígnio tão misterioso quanto inexorável.
Foi assim que consegui aproveitar ao máximo os 10 meses em que ainda pude conviver com o grande amor da minha vida, contribuindo para que esse período se tornasse o que Gilberto denominou de “os últimos melhores dias da minha vida”. O momento da partida foi se avizinhando lentamente e culminou com uma passagem tão bela, quanto mágica. Aquele estado de encantamento me acompanhou por mais dois dias, até que meu marido pudesse ser enterrado. Gilberto era judeu e morreu em meio a um feriado religioso no qual não se podem realizar cerimônias fúnebres.
A dor dilacerante inerente às perdas irreparáveis só me rasgou por dentro quando já estávamos no cemitério, durante o ritual da keriá, em que um oficiante corta um pedaço da roupa dos enlutados para simbolizar a incompletude dos que ficam. Por um momento, tive a sensação de que aquela tesoura cortaria o meu laço com Gilberto e, quando ela se aproximou de mim, uivei como uma loba. A minha consternação era tamanha, que quase perdi os sentidos na tentativa de me descolar daquela realidade insuportável.
Só não me afoguei na tristeza porque havia prometido a Gilberto terminar o livro que começáramos a escrever juntos. A escrita me salvou. Passei os dois meses seguintes revivendo a nossa história e sentindo uma emoção enorme ao vê-la se perpetuar nas páginas que produzia. O livro, também batizado por Gilberto de “Os Últimos Melhores Dias da Minha Vida”, foi lançado seis meses após a sua morte e continua me ajudando a ressignificar o meu sofrimento. Diariamente, leitores de todos os matizes me enviam lindas mensagens, contando como a obra os inspira a encontrar novos sentidos para sua existência.
Às vezes, penso que meu marido continua arquitetando seus projetos mirabolantes para conectar as pessoas ao seu propósito e ajudá-las a melhorar o mundo. Eu já nasci com essa missão, mas Gilberto sempre foi minha principal inspiração para torná-la realidade. Éramos uma boa dupla até nesse quesito. Quando relatávamos o que tínhamos realizado ao longo do dia, ele costumava dizer que a nossa casa contribuía mais com a humanidade do que muitas organizações sociais de peso. Tinha orgulho do que fazíamos. Achava que a vida só tem sentido quando devotada ao outro e sabia ter construído um legado importante. Esta convicção o confortou quando precisou lidar com a finitude. Também tem me consolado quando me custa caminhar sem a mão dele na minha.
Lembro do contentamento de Gilberto durante o período em que esteve doente, quando se dispôs a apreciar as coisas simples do cotidiano como se fossem algo extraordinário, quando passou a receber cada novo dia como de fosse um presente. Foi assim que me ensinou a compreender a vida como uma dádiva e a celebrar o privilégio de estar viva. Essa atitude tem me ajudado a vencer o desânimo que me acomete quando acordo e, antes mesmo de abrir os olhos, me recordo de que ele não está mais deitado ao meu lado.
Alguém um dia me perguntou se existe vida após o luto. No meu caso, devo admitir que a vida que eu conhecia deixou de existir, assim como a sensação de plenitude que eu sentia quando tinha Gilberto ao meu lado. Precisei me reinventar. Mas antes foi necessário me acostumar com “a ridícula ideia de que nunca mais o veria”, como diria a escritora espanhola Rosa Monteiro, que também perdeu seu companheiro para o câncer. Tive que aprender a proferir as palavras que tanto me assustavam: “Gilberto morreu”. Só assim pude fazer com que meu inconsciente parasse de esperar que ele voltasse de uma viagem imaginária. Só assim pude começar a renascer das cinzas.
Seis meses depois dele partir, aceitei uma nova proposta profissional que já visualizo como a mais desafiadora da minha carreira. Acredito que só me dispus a criar algo tão complexo porque acabei absorvendo algumas das caraterísticas de Gilberto que me faziam falta, como a coragem de sonhar com algo que está muito além de onde a minha vista alcança e uma autoconfiança que só desenvolvi depois dele me fazer sentir incondicionalmente amada.
As mudanças também deixaram marcas no meu corpo. As mechas grisalhas que hoje emolduram o meu rosto me fazem perceber que não sou mais a mesma. O espelho revela uma pessoa mais humana, profunda e resiliente. Do lado esquerdo do peito, tatuei uma ramo de primavera (ou bougainville), árvore que cresce na nossa calçada e cujas flores embelezaram o nosso quarto durante os últimos meses de Gilberto. Queria ter certeza de que ele faria parte de mim para sempre.
Decidi continuar morando na nossa casa, mas pintei as paredes externas de cor-de-rosa para demarcar o começo de uma nova era, em que passo a viver sozinha. Nossas fotos continuam espalhadas por todos os cômodos, já que senti-lo por perto aplaca a minha saudade. Também montei um altar no meu quarto para reunir algumas das minhas melhores lembranças. As garrafinhas que ele trouxe do Ceará com nossos nomes desenhados em areia colorida. A caneta em cuja caixa mandou gravar a frase “Anna, a escrita da minha vida”, muito antes de saber que eu escreveria um livro sobre seus últimos dias. O pingente no qual escondeu um pequeno bilhete que eu só poderia ler após a sua morte e no qual havia escrito “eu te amo”.
Quando a tristeza me envolve, prefiro chorar sozinha, tendo apenas Gilberto como companhia. Durante os encontros com a família e os amigos, quero mais que eles me façam sorrir. Aprendi a pedir ajuda e me regozijo com a rede de afetos que me cerca. Sinto-me especialmente embalada pelos meus enteados Marcos e Gabriel, ao mesmo tempo em que procuro ajudá-los a embalar os netos de Gilberto, Zeca e Flora, símbolo maior da sua continuidade e permanência entre nós.
Falar sobre meu marido e as experiências que compartilhamos me traz imensa alegria, assim como utilizar o que aprendemos para apoiar outras pessoas que sofrem. Saber que nosso livro tem espalhado bons sentimentos pelo mundo também me faz um bem incrível. Em tempos difíceis como os que vivenciamos, nada mais revolucionário do que propagar o amor, o propósito e o retorno ao essencial.
Já se passaram quase 10 meses desde que Gilberto se foi. A dor ardida e líquida em que me afoguei na primeira fase do luto foi gradualmente se transformando em pesar sólido. Carrego uma cicatriz ancorada no fundo da minha alma, que lateja permanentemente, sangra quando machucada, mas já não me toma por inteiro.
Mais uma vez, devo muito dessa superação a Gilberto que, ao invés de levar os meus sonhos consigo, deixou os sonhos dele comigo. Por isso, sinto tanto desejo de plantar novas sementes em torno do buraco que se abriu no meu coração. Desconfio que esse vazio nunca será preenchido, mas estou certa de que novas primaveras brotarão ao seu redor, porque Gilberto morreu, mas, para mim, continuará sendo sempre sinônimo de vida.”
Corre lá:
Livro: “Os últimos melhores dias da minha vida, de Gilberto Dimenstein e Anna Penido, Editora Record, 2020
Insta: @annapenido1