A Mariana fala de despedidas, pai e mãe. Em três meses, a casa vazia, o fogão aquietou e o café da tarde sumiu da sua vida. Num domingo, um almoço que esperava continuidades e tudo começou. O pai, O COVID, a mãe, o COVID, a saudade do marido, o câncer que acorda e evolui rapidamente. Os lugares de continuidades, “reerguer, levantar a cabeça, me apegar a Deus” acompanhados de dias em que a “saudade sufoca, e parece ter um nó na garganta”. Eles ficam porque Mariana sempre será filha, ali ela conheceu o mundo. Assim é, assim será, para sempre. Amor não acaba.
“Meu pai e minha mãe sempre foram meus exemplos de amor e bondade, fui muito amada, protegida”
Me chamo Mariana, tenho 26 anos, sou casada há 2 anos. Atuo na profissão como Enfermeira, e vou contar um pouco da minha história. Sempre fui muito apegada aos meus pais. Talvez por ser o ”temporão” como eles gostavam de dizer. Meu pai e minha mãe sempre foram meus exemplos de amor e bondade, fui muito amada, protegida, mimada de todas as formas, eles literalmente faziam de tudo por mim, e vice-versa. Gostava muito de agradar eles, de passear, e tomar aquele café delicioso da tarde. Ah, que saudades desses momentos.
Meu pai, José, 72 anos, era aposentado. Minha mãe, Ana, 65 anos. Meu pai teve cinco filhos de outro casamento, mas não tive contato com meus irmãos. Minha mãe também teve outra filha do primeiro casamento, minha irmã Dayana.
Meus pais moravam sozinhos, mas eu sempre estava presente. Nos falávamos e nos víamos quase todos os dias. Meu pai tinha histórico de várias comorbidades. Minha mãe era fumante há 40 anos, mas sempre muito saudável. Gostava de caminhar, era muito ativa e inquieta, não parava.
“Meu pai começou a ter alguns sintomas de gripe, tosse, dores no corpo e febre. Comecei a ficar mais preocupada.”
Vivemos durante um ano de pandemia nos protegendo e nos cuidando, pois como os dois eram do grupo de risco, tínhamos muito medo de contrair o vírus. Até que no dia 27/03/21, num domingo de almoço, minha mãe começou a se queixar de cansaço, fadiga, indisposição e perda do paladar e olfato. Ficamos preocupados. Como sou enfermeira fui aferir sua saturação (94%). Por ser fumante estava dentro do esperado, porém, também fiquei muito preocupada com a alteração que percebi no seu pulso. Sua frequência cardíaca estava muito alta. Fiquei preocupada, mas minha mãe não demostrou medo e disse que estava bem.
Meu pai, até então, sem nenhum sintoma. No dia seguinte minha mãe foi até UBS e fez o exame, demorava alguns dias para ficar pronto. No dia 01/04/21, meu pai começou a ter alguns sintomas de gripe, tosse, dores no corpo e febre. Comecei a ficar mais preocupada. O resultado do exame da minha mãe tinha dado negativo para COVID.
“Minha mãe continuava apresentando cansaço e indisposição, mesmo diante do resultado negativo. Meu pai fez o exame e levava alguns dias para ficar pronto. “
Eu os trouxe para minha casa para melhor cuidado e ajuda. Nesse mesmo dia levei meu pai ao médico, foi solicitado exame da COVID. O médico não prescreveu nenhum medicamento, devido às comorbidades. Orientou tomar somente o antitérmico para febre.
Minha mãe continuava apresentando cansaço e indisposição, mesmo diante do resultado negativo. Meu pai fez o exame e levava alguns dias para ficar pronto. No dia 05/04/21 meu pai começou a ter uma piora da saturação, mesmo não demostrando dificuldade em respirar. Resolvi levá-lo novamente para avaliação médica. Ficou no oxigênio por algumas horas, realizou raio x do pulmão e foi orientado a fazer uma tomografia num hospital.
Dia 06/04 fomos ao hospital, ele ficou isolado. Após o resultado dos exames, o médico me chamou, eu estava sozinha. Meu esposo tinha ficado com minha mãe em casa. O médico solicitou a internação, o pulmão já estava com 50% de comprometimento. Nesse momento eu não pude mais vê-lo e nem me despedir. Fiz a internação e voltei para casa.
Chegando em casa minha mãe teve uma crise de falta de ar, porque ficou muito nervosa e preocupada com meu pai. Chamei o serviço de resgate SAMU. Foi levada para o mesmo hospital onde meu pai estava internado. Esse dia foi o mais angustiante para mim. Os dois estavam internados. Minha mãe foi liberada no dia seguinte. De manhã cedo meu esposo foi pegá-la.
“Sete dias após o falecimento dele, contei para minha mãe. Ela ficou muito desesperada, e não acreditava que ele tinha sido enterrado assim tão rápido, sem ela saber.”
Na noite do dia 07/04, me ligaram do hospital para fazer uma chamada de vídeo com meu pai, sendo informada que o estado de saúde dele era muito grave e delicado. No momento em que o vi, todo encolhido, cheio de cobertas, com a máscara de oxigênio, não consegui conter o choro. Eu disse que o amava muito, que era para ele ser forte e aguentar firme.
Minha mãe, nesse momento, começou a passar mal e ter crises de falta de ar, pelo nervosismo de ver meu pai naquela situação. No dia seguinte, às 0h00, pediram que eu comparecesse ao hospital. Minha irmã permanecer com minha mãe, que dormia.
No hospital, a pior notícia, meu paizinho amado tinha vindo a óbito. Eu não pude me despedir, abraçar ou beijar.
Voltei para casa, minha mãe não estava bem e preferi não contar para ela. Enterrei meu pai sozinha, acompanhada da minha sogra, esposo e alguns dos filhos do meu pai. Foi muito doloroso não ter me despedido e não ter dado um enterro e velório digno como ele merecia.
Sete dias após o falecimento dele, contei para minha mãe. Ela ficou muito desesperada, e não acreditava que ele tinha sido enterrado assim tão rápido, sem ela saber. Como ela não estava melhorando da falta de ar e cansaço, resolvemos levá-la para novos exames. Na tomografia foi constatado câncer de pulmão, em estado avançado e incurável e nada podia ser feita, apesar de várias tentativas.
“Eu estava segurando sua mãe no momento em que ela partiu. Eu estava sozinha com ela no quarto do hospital e presenciei seus últimos suspiros.”
A COVID acelerou o tumor que estava quieto e silencioso. Três meses após o falecimento do meu pai, em 06/7/21, minha mãe veio a óbito. Eu estava segurando sua mãe no momento em que ela partiu. Eu estava sozinha com ela no quarto do hospital e presenciei seus últimos suspiros. Foi muito difícil para mim me desligar dela naquele momento, mas eu entendi que ela estava sofrendo e que sua missão já havia sido comprida.
Hoje consigo falar abertamente sobre o luto. Perder pai e mãe, praticamente juntos, de forma rápida e dolorida. Eu penso neles 24h do meu dia. Acordo e vou dormir pensando neles. O amor que eu sinto nunca parou de existir. Conviver com a saudade é a pior parte, pois eu não deixei de ser filha. O meu papel ainda está aqui. Eu ainda sou a filha do seu José e da dona Ana.
Com ajuda da terapia durante esses meses de luto eu pude compreender como é importante eu trabalhar esse papel de filha. Trabalhar a presença deles e não a ausência. Lembrar dos momentos felizes e alegres que tivemos juntos. Acredito que cada um vive o luto de uma forma. Eu tinha tudo para desenvolver a depressão, sou jovem e perder as duas pessoas mais importantes da minha vida está sendo a pior fase da vida. Exige muita saúde mental e autocontrole.
“Decidi me reerguer, levantar a cabeça, me apegar a Deus e pensar somente em coisas boas. Nem todos os dias eu sigo assim, bem e ”forte”. Tem dias que a saudade sufoca, e parece ter um nó na garganta.”
Eu sentia no fundo do meu coração algo maior não me deixava cair, me desestruturar. Algo maior me segurava e me dava força, me fazendo ficar mais forte ainda. Foi aí que decidi me reerguer, levantar a cabeça, me apegar a Deus e pensar somente em coisas boas. Ajudou muito a amenizar a tristeza e a angústia que eu sentia.
Nem todos os dias eu sigo assim, bem e ”forte”. Tem dias que a saudade sufoca, e parece ter um nó na garganta. Às vezes me falta o ar, as vezes tenho crises de choro e ansiedade. Muitas vezes me sinto sozinha, mesmo tendo grande apoio do meu esposo, que me ajuda muito.
Sei que era eles iriam me querer ver bem e feliz, que eu continuasse a viver. Minha mãe era a mulher mais forte e corajosa que eu já conheci. Literalmente uma guerreira. Lutou até o último minuto. E eu sinto muito orgulho e gratidão a Deus por ter me presenteado, em ter convivido 25 anos ao lado deles, em ter escolhido o seu José e a dona Ana como meus pais. Sei que o amor nos une. E a força que carrego no coração e na alma vem deles. Estamos conectados sempre. Amo vocês além da vida, eternamente, até o céu.
Com carinho Mari/Mana/Filha.
@martinsmarib
@lacoselutos_