(Autoria:Maria Alice Buendia)
Hoje, 22/08/20, é o dia de bebê arco-iris, mas o que dizer sobre o bebê que não chega? Esse luto não reconhecido, muitas vezes ignorado e tão profundo, do filho esperado? Conheci as escritas de Maria Alice através do Insta Cartas ao Futuro Filho, escritas delicadas que falam de uma espera, que atravessa horas, dias, meses e anos, escritas que carregam o par de sapatinhos que aguardam os pés de um bebê para existirem, que incluem tratamentos prolongados, ansiedade, medo, lágrimas e esperança, dia após dia, incessantemente, apesar dos cansaços. As cartas merecem ser lidas e divulgadas, um jeito de trazer à tona essa dor que, muitas vezes, não tem existência.
“Quando ouvi pela primeira vez que poderia ter problemas de fertilidade, fiquei desnorteada. Estava em uma consulta de rotina com a ginecologista e falei sobre minha vontade de parar a pílula. Não porque quisesse engravidar: andava lendo bastante sobre os malefícios do uso continuado do anticoncepcional e decidi que queria conhecer melhor o meu corpo. Minha médica foi clara: pode parar, mas saiba que seu ciclo deve ficar uma loucura, porque você tem síndrome do ovário policístico, que inclusive pode te render problemas de fertilidade. Eu já sabia que tinha a tal da síndrome, inclusive comecei a tomar pílula bem cedo por causa dela, mas nunca tinha me importado muito com essa condição.
Já o termo “problemas de fertilidade” fez eco nas profundezas da minha cabeça. Naquele momento, a maternidade sequer passava pela minha cabeça. Nunca fui a criança que gostava de brincar de bonecas, de mãe e filha, de casinha. Meu estilo era de menina moleca, que jogava bola e ralava o joelho. Pois bem, do alto dos meus 31 anos, ter filhos era uma coisa vaga e distante, que não ocupava meus pensamentos. Estava recém-casada, curtindo a vida, focada na carreira profissional, nos estudos, nas viagens planejadas. Só que, de repente, aquela sentença “problemas de fertilidade” me despertou para um questionamento sério: mas e se eu quiser ter filhos?
Fato é que parei a pílula e, conforme previsto, passei meses sem qualquer sinal de menstruação. A cada ciclo sem menstruar, via a suspeita dos “problemas de fertilidade” se confirmando diante dos meus olhos. Fiquei angustiada. Não sonhar em ter filhos era uma coisa, saber que algo me impedia de tê-los era algo totalmente diferente. Aquela impotência passou a me incomodar muito, e me fez perceber: se incomoda tanto, é porque quero, sim, ter um filho. Foi o começo da jornada.
Conversei com meu marido e ele concordou. Como eu, não sonhava com filhos, mas aceitava de bom grado a possibilidade. Tínhamos ambos 32 anos quando decidimos iniciar as tentativas. Fiz alguns exames, que apenas confirmaram a SOP, mas nada que impedisse de modo definitivo uma gravidez. Tentamos sem muita preocupação por alguns meses, havia certa expectativa mas nada que tirasse nosso sono. Com o tempo, contudo, aquelas tentativas leves e divertidas foram ficando mais carregadas. A vontade de ter meu filho era diretamente proporcional à constatação da nossa dificuldade. Ouvia da minha ginecologista que a ansiedade atrapalhava, era só relaxar que nosso filho viria. Parecia simples, só que saber que não devia ficar ansiosa era a receita perfeita para ficar ainda mais ansiosa.
Depois de um ano de tentativas frustradas, enfim percebemos que era preciso buscar um médico especializado. Fizemos uma montanha de exames e descobrimos que, além da minha síndrome, meu marido tinha alterações significativas no espermograma, talvez pelo uso de finasterida (remédio para calvicie) por muitos anos. Esses problemas somados deixavam a situação bem difícil.
Começamos com o tratamento mais simples para um casal com problemas de fertilidade: o coito programado. Foi o começo de um processo desgastante, cheio de hormônios, decepções e uma rotina muito chata. Tentamos por cinco longos ciclos com alta expectativa e energia, mas sem sucesso. Pode parecer pouco para quem lê com afastamento, mas passar cinco meses tomando remédios, fazendo várias ultrassonografias e exames de sangue a cada mês e tendo hora marcada para uma relação são fatores geradores de muito stress. Hoje, data em que escrevo, vamos iniciar nossa sexta e última tentativa, antes de partir para uma fertilização in vitro, técnica mais complexa, extremamente cara e ainda mais desgastante.
Viver a infertilidade é viver um luto contínuo, que se renova em ciclos. É um processo muito sofrido para um casal, que precisa lidar com tratamentos marcados pela frieza, com hormônios, com planos frustrados e todo tipo de pressão de uma sociedade que continua tratando esse problema como tabu. A infertilidade é uma doença que afeta cerca de 15% dos casais no mundo e pode ser tratada com sucesso, mas segue sendo vista como uma vergonha, ignorada nas rodas de conversa entre amigos e famílias, invisibilizando casais que passam por isso. A falta de diálogo e naturalidade para tratar o problema geram ainda mais sofrimento e sentimento de solidão. Justamente por isso, senti a necessidade de escrever.
Criei um perfil anônimo no Instagram e escrevo quase diariamente cartas para meu futuro filho, nas quais posso desabafar e encontrar o apoio de outros casais desconhecidos, em situação similar à minha. Através do perfil, conheci o secreto mundo dos tentantes e percebi que não sou a única pessoa do mundo que não consegue ter um filho. Os tentantes se organizam em grupos de apoio, onde trocam relatos, dicas, palavras de carinho e solidariedade. As mulheres tentantes dissertam sobre a qualidade dos seus mucos cervicais, contam os dias dos seus ciclos, compartilham testes de ovulação, dicas, receitas fertilizantes e orações. Parece uma loucura, mas faz um bem danado ter companhia para atravessar essa fase de luto. Na verdade são mulheres muito fortes, que estão sofrendo em silêncio e encontram em outras desconhecidas uma irmandade cúmplice. Tem mulheres com SOP como eu, com endometriose, trombofilia, idade avançada, marido com espermograma alterado, problemas que não entendo nem o nome. Tem quem sequer encontra um diagnóstico para entender porque não consegue engravidar. Há quem esteja na luta há muitos anos, quem já gastou fortunas fazendo todo tipo de procedimento, e aquelas que não tem dinheiro para se consultar com um médico especializado. Tem as mulheres que estão tentando de novo, depois de abortos e perdas gestacionais. Elas esperam seu “bebê-arco-íris”, o filho que virá depois da tempestade. Fico pensando no quanto que a vida é potente, e pode curar as feridas mais profundas. Apesar de triste, acho isso muito lindo.
Enfim, espero com meu relato chamar atenção para essa questão, muito mais comum e dolorosa do que se pensa. Quero voltar aqui um dia para contar sobre minha superação: a chegada do meu pequeno milagre. Por enquanto só me resta seguir na luta e confiar. Tempos melhores virão.”
(Autoria: Maria Alice Buendia)
@cartas.ao.futuro.filho