A Morte do Pai – Minha Luta: 1

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Karl Ove Knausgard

(Sinopse / Autoria: Marcia FB) Numa época em que a curiosidade sobre a vida alheia assume contornos doentios, confesso que receava que “A Morte do Pai” fosse um livro em formato reality show. E se o alarido em redor do livro me fixou nesse palpite, posso apenas resignar-me e aceitar que sou mais uma criatura com interesse em espreitar a vida dos outros.
Se tudo o que Karl Ove escreve é autobiográfico e verdadeiro, tiro-lhe o chapéu à coragem de contar pormenores tão pessoais de forma por vezes tão fria e distante, não exactamente pelos factos, mas pela forma como ele olha e vive os factos. A família, as mulheres e os filhos têm o lugar que ele lhes atribui na sua escala de prioridades. Não discuto nem me interessa se é a certa ou a errada, mas admiro a honestidade, a sinceridade de dizer que gosta e precisa de solidão, e que esta é essencial ao seu objectivo. Escrever. Amará menos os outros por lutar pelo seu espaço? Se calhar sim. E não é bonito. Mas se é verdade adianta negar aos outros? E a si próprio?
Com a leitura desliguei-me da dúvida verdade/mentira/realidade/ficção. Não porque esteja convencida de algum dos pontos, mas simplesmente porque deixou de me interessar. “A Minha Luta” é a história de um homem. Uma boa história, bem contada e bem escrita. Por isso pouco me importa se é a história do homem da capa ou de outro qualquer.
Um livro que é uma construção, que se constrói a si próprio, e que me foi convencendo à medida que avançava na leitura. Como se fosse ganhando sustentação. No fundo, como se fosse crescendo, como se o autor fosse apurando as descrições, os pensamentos, a forma de observar o mundo com o passar dos anos, de criança a jovem adulto. A maturidade da escrita é crescente e acompanha os anos de vida de Karl Ove. Propositado ou não o resultado é, na minha opinião, satisfatório.
O salto qualitativo da narrativa é francamente notório a partir da segunda parte. Um Karl Ove adulto é descrito de forma mais desafiante e menos óbvia. O leitor torna-se íntimo das suas reflexões e viagens às recordações. Independentemente das diferenças culturais que possam justificar uma maior frieza, e esta possibilidade é, obviamente discutível, a forma como olha para si próprio, o distanciamento que consegue criar em relação a tudo é tão marcante e intenso, que as reacções emocionais à morte do pai fazem dele um ser humano complexo e incoerente e, definitivamente, desorientado. Nada de novo. O senhor é humano.
Gostei e quero ler o próximo. E, se não desiludir, prossigo.
“Andei de um lado para o outro durante alguns minutos, tentando atribuir algum significado ao facto de o meu pai estar morto, mas não consegui. Não tinha significado. Eu percebia-o, aceitava-o, e o absurdo não era que uma vida que poderia não ter sido ceifada fora ceifada, mas que se tratasse de um facto entre muitos outros e não ocupasse na minha consciência a posição que deveria ocupar.” (Pág. 200);
“Mas o meu pai tivera aquilo que merecera, era bom que tivesse morrido, tudo aquilo que em mim sugerisse o contrário era mentira. E isso aplicava-se não só ao homem que ele fora quando era pequeno, mas também ao homem que se tornara na meia-idade, quando rompeu com o passado e começou de novo.” (Pág. 207);
“A primeira vez que me apercebi de que o que estava a escrever tinha realmente algum significado, e que não era apenas eu querer ser alguém ou a fingir ser alguém, foi quando escrevi uma passagem sobre o meu pai e comecei a chorar enquanto escrevia. Nunca me aconteceu tal coisa, nem nada de semelhante. Escrevi sobre o meu pai e as lágrimas correram-me pelas faces. Mal conseguia ver o ecrã ou o teclado, limitava-me simplesmente a martelar as teclas. Desconhecia por completo a existência daquela dor que jazia dentro de mim e que nesse instante se libertara; não tinha a mais pequena intuição de que ela existia. O meu pai era um idiota, eu não queria ter nada que ver com ele, e não me custava nada manter-me afastado. Nem se tratava de me manter afastado dele, mas sim de que ele não existia; nada nele me comovia. Era assim que tinha sido, mas depois sentara-me a escrever e as lágrimas jorraram.” (Pág. 371);
Sinopse
“Karl Ove Knausgård escreve sobre a vida com dolorosa honestidade. Escreve sobre a infância e os anos de adolescência, a paixão pelo rock, a relação com a sua afectuosa e algo distante mãe, e o seu pai, sempre imprevisível, cuja morte o desorientou. O álcool e a perda pairam como sombras sobre duas gerações da família.
Quando ele próprio se torna pai, Knausgård tem de encontrar um equilíbrio entre o amor pela família e a determinação em escrever.
Knausgård criou uma história universal de lutas, grandes e pequenas, que todos enfrentamos na vida. Um trabalho profundo e hipnotizante, escrito como se a própria vida do autor estivesse em risco.
A Morte do Pai é o primeiro de seis romances que compõem a obra autobiográfica A Minha Luta.”
Relógio D’água, 2014
Tradução de João Reis

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