Dentro de uma mãe um filho nunca morre…

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Larissa e João, o terceiro filho, esperado e desejado. O diagnóstico, aos três meses, e o luto em vida, aproveitando cada minuto dessa passagem. O amor dos pais e das irmãs, a inclusão e o carinho. As memórias que vem e vão, a busca por ajuda, a terapia e os medicamentos. A certeza que o caminho de uma mãe comportará lágrimas e memórias, sempre, “nem toda tristeza precisa ser tratada, algumas só precisam ser acolhidas e respeitadas”, e que esse caminho é justo, é um direito diante desse amor que não findará, nunca, porque “dentro de uma mãe um filho nunca morre”.

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“João nasceu um pouco depois de ter completado 40 semanas de gestação, em um parto normal e sem intercorrências, a não ser pela apneia que fez poucos minutos depois de vir para o meu colo.”

“Sou Larissa, mãe eterna do João, meu terceiro filho, fruto de uma gravidez desejada e muito comemorada, principalmente por ser um menininho depois de duas meninas. A gravidez foi tão tranquila quando se poderia esperar de uma gestação em meio a uma pandemia em que não sabíamos dos efeitos do vírus em gestantes e bebês.

João nasceu um pouco depois de ter completado 40 semanas de gestação, em um parto normal e sem intercorrências, a não ser pela apneia que fez poucos minutos depois de vir para o meu colo, enquanto ainda estávamos ligados pelo cordão umbilical. Apesar do susto, a pediatra e a obstetra garantiram que tinha ocorrido tudo bem durante o parto e que não passava de um susto, comum em bebês que passam por um período expulsivo muito rápido, mas, além de não conseguir respirar satisfatoriamente sem ajuda, João teve uma crise epilética, depois outra, e nos dias que se seguiram foram inúmeros exames na tentativa de descobrir o que estava acontecendo com ele.

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“Meu filho nunca falou uma palavra, mas me ensinou a amar de um jeito que eu não sabia que era capaz.”

O diagnóstico somente veio aos três meses de vida, com o resultado de um exame genético que apontava uma doença muito grave e rara, e no próprio laudo, já constava que era uma doença mitocondrial letal. A partir daquele dia, eu passei a viver o luto do meu filho em vida, porque eu sabia que ele me deixaria cedo, mas decidi que o tempo que ele estivesse conosco seria bem aproveitado. Queria que tivéssemos memórias felizes de sua passagem pela nossa vida.

Os dois anos e pouco em que viveu foi de muita luta. A condição dele não era fácil, nem para ele e nem para a gente. João nunca teve o desenvolvimento normal, tomava inúmeros medicamentos controlados, nunca sentou sozinho, se alimentava por gastrostomia, precisava de sonda para fazer xixi, teve inúmeras intercorrências respiratórias. Ele nunca falou uma palavra, mas me ensinou a amar de um jeito que eu não sabia que era capaz.

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“Minhas filhas eram um exemplo de inclusão e de carinho, além da compreensão com os pais que nem sempre estavam presentes para elas.”

Ele me transformou por inteira, mudou minhas prioridades, meu pensamento político, a minha relação com o dinheiro, diferenças, com as minhas limitações e as limitações dos outros. Um diagnóstico desse tamanho acaba com muita superficialidade que a gente carrega na vida.

As irmãs, Helena (8) e Alice (6), acompanhavam de perto todo o tratamento, as inúmeras terapias, internações e ocorrências. Sabiam que tinham um irmão com deficiência e o aceitavam e amavam mesmo assim. Eram um exemplo de inclusão e de carinho, além da compreensão com os pais que nem sempre estavam presentes para elas.

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“Lembro com detalhes do momento do hospital, dos dois minutos cronometrados no celular da enfermeira para a próxima dose de adrenalina; de já saber que ele não voltaria mais…”

O dia em que João morreu (02/11/2022) foi um dia tão bom, recebemos visitas em casa, ele estava estável há bastante tempo, eu jamais poderia imaginar que naquele dia ele nos deixaria. Ele teve uma reação a um medicamento que já tomava (reação vasovagal) e o coraçãozinho dele parou de bater.

A despedida do João
“Lembro com detalhes do momento do hospital, dos dois minutos cronometrados no celular da enfermeira para a próxima dose de adrenalina; de acompanhar as médicas se revezando para fazer a massagem cardíaca no meu pequeno, porque foi muito tempo e elas se cansavam; de já saber que ele não voltaria mais, e por duas ou três vezes, pensar em falar que elas podiam parar, que já não adiantava, mas não ter coragem de interferir no trabalho delas…

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“Lembro como é cruel escolher caixão, flores e frase da coroa quando, na verdade, a gente só quer deitar em posição fetal e chorar sem parar.”

Lembro como se a alma tivesse saído do corpo e eu conseguisse enxergar de cima a cena de João no meu colo, só de fraldinha. Fiquei agarradinha nele até me mandarem largar porque a funerária já havia chegado. Nesse meio tempo, Calebe sentado em uma cadeira do meu lado, ligando para meus pais, os pais dele e alguns parentes mais próximos para dar a difícil notícia.

Lembro como é cruel sair do hospital e ter que ir direto para o serviço funerário para escolher caixão, flores e frase da coroa quando, na verdade, a gente só quer deitar em posição fetal e chorar sem parar. Do velório, admito, não tenho muitas lembranças… É como se o corpo estivesse presente, mas a cabeça em outro lugar.

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“Lembro da sensação que tive quando vi o caixãozinho e a minha primeira reação foi o desejo de pegar João no colo de novo.”

Lembro de, no caminho, explicar para as meninas o que aconteceria, a Alice me perguntar se o João que ia encontrar ainda seria humano. Lembro da sensação que tive quando vi o caixãozinho e a minha primeira reação foi o desejo de pegar João no colo de novo, mas imaginei que não era uma conduta muito adequada e que as pessoas achariam estranho, e por isso me contive.

Lembro do momento que abracei meu pai (meus pais estavam viajando no dia em que João faleceu e chegaram direto no velório) e desabei, porque senti que, naquele momento, eu poderia fraquejar, que eles tinham chegado para me segurar.

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“Não lembro absolutamente nada do que ouvi ou falei, a não ser na hora da despedida, dessa hora eu lembro…”

Lembro (com muita gratidão) do meu tio preocupado em comprar comida e água para as meninas, porque isso nem passou pela minha cabeça. Lembro de estar conversando com o João quando Calebe me virou para ver uma grande amiga que eu não esperava que fosse ao velório (ela não estava em BH) e de dar um respiro de alívio por ela estar ali.

Lembro de um monte de coroas de flores chegando, tantas que ocuparam outra sala, mas que eu não fui ver porque não queria sair do lado do João. Lembro de ter muita, muita gente lá nos dando apoio, algumas vezes, vem flashes na minha cabeça de alguém que eu não lembrava que havia ido, mas não lembro absolutamente nada do que ouvi ou falei, a não ser na hora da despedida, dessa hora eu lembro…

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“Não gosto de ficar triste, mas gosto de lembrar os detalhes para ter certeza que nunca vou esquecer nem um pedacinho da nossa história.”

Lembro que os dias seguintes foram mais difíceis, quando a ficha começa a cair lentamente, a vida começa a voltar para uma rotina diferente e o vazio dói.”

Não gosto de ficar triste, mas gosto de lembrar os detalhes para ter certeza que nunca vou esquecer nem um pedacinho da nossa história. Faz quase um ano e meio dessa data e, nesse tempo, não teve um único dia em que eu não pensei no João.

Eu nunca vou entender os motivos de Deus para a nossa história, mas eu aceito; acho que isso se chama fé. Sou grata por tudo que aprendi, por ter tido a coragem de enfrentar com o coração aberto esse desafio que me foi dado, por não ter deixado a condição do João afundar a minha família em tristeza e lamúrias.

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“A tristeza que sinto com mais frequência agora não é nada inesperada, ao contrário, é uma mãe vivendo o luto de um filho, que nunca vai acabar.”

Precisei de ajuda para seguir, fiz acompanhamento psicológico e psiquiátrico e, há poucos dias, tomei a última metade de comprimido do meu antidepressivo. Nesses últimos dias, com a dose já muito baixinha, eu comecei a perceber que, se antes eu conseguia falar sobre o João sem chorar, agora já não consigo mais. Toda vez que ele me vem à cabeça, a lágrima vem aos olhos.

Pensei que, talvez, eu ainda não estivesse tão bem para abrir mão desse amparo medicamentoso, mas, depois de alguns dias pensando, conclui que a tristeza que sinto com mais frequência agora não é nada inesperada, ao contrário, é uma mãe vivendo o luto de um filho, que nunca vai acabar.

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“Desde que a dor não me impossibilite de continuar vivendo, de olhar para a futuro e procurar a felicidade, tudo bem senti-la!”

O remédio me ajudou na fase mais difícil, secou minhas lágrimas, não me deixou sucumbir, mas agora que essa fase “mais crítica” já passou, só me resta abrir os braços para a minha história e aceitar que ela dói, não o tempo todo, mas dói; que a saudade vai me acompanhar para sempre e que tudo bem chorar rapidinho, três vezes ao dia, quando o rostinho do João vem no meu pensamento.

Desde que a dor não me impossibilite de continuar vivendo, de olhar para a futuro e procurar a felicidade, tudo bem senti-la! Ninguém é feliz 100% do tempo, eu não era antes de ter o João, seria muita pretensão minha querer ser após perdê-lo.

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“Fato é que uma mãe nunca perde um filho, porque dentro da gente um filho nunca morre.”

Nem toda tristeza precisa ser tratada, algumas só precisam ser acolhidas e respeitadas. É o caso da minha. Ela precisa que eu aprenda a conviver com ela e aceitar que vai sempre me acompanhar, porque é efeito da oportunidade que tive de ser mãe do João, e ser mãe do João foi uma grande oportunidade de amar. É engraçado que, quando penso assim, a tristeza se mistura com a gratidão; a lágrima vira sorriso e a vida segue em frente, até a próxima lágrima…

Fato é que uma mãe nunca perde um filho, porque dentro da gente um filho nunca morre. João continua vivo dentro de mim, no meu coração e no meu pensamento e, apesar de toda a dor e saudade que sinto, se me fosse permitido escolher, eu passaria por tudo de novo para tê-lo. Mil vezes sofrer amando do que deixar de amar por medo de sofrer.”

(Autoria: Larissa Ribeiro Salles Moura)

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