Vanessa e seu amor pela mãe, Luzia. Um amor inteiro e disponível onde só cabe gratidão. O caminho era a plaquinha no final da internação, a volta para casa, o cuidado com todos. O caminho eram as orquídeas, o mar e, no futuro, a formatura dos netos. Não houve comunicado. Não houve despedida. Não houve mãos entrelaçadas. Fica uma saudade imensa, autorizada e necessária para seguir após tanto amor, com tudo que cabe numa saudade.
“A Covid foi cruel, bastaram sete dias a partir da internação para que ela nos deixasse. Minha mãe não tinha comorbidades…”
Me chamo Vanessa, minha mãe, Luzia da Grecia Carraro Silva, faleceu em 03/2021, aos 67 anos, sozinha, no hospital, em decorrência de complicações da Covid.
“Mães deveriam ser eternas, imortais! A Covid foi cruel, bastaram sete dias a partir da internação para que ela nos deixasse. Minha mãe não tinha comorbidades, sentiu uma dor e acreditou que fosse a coluna que, por vezes, doía em razão da hérnia de disco que a acompanhava há alguns anos, mas, junto, veio uma tosse que sangrava. Um alerta foi instalado e procuramos ajuda médica, pela segunda vez, já que no posto de saúde, na primeira consulta, haviam prescrito dipirona.
“Fez-se necessária a internação, confesso que me questionei muito se devia prosseguir, mas ela disse que iria para ficar boa logo e voltar para casa.”
Havia feito o teste e sabia que era Covid; uma tomografia comprovou que seus pulmões estavam inflamados em 50%. O médico solicitou que ficássemos alertas, mas fazendo a medicação em casa mesmo, saturava bem e não apresentava um cansaço considerável. Voltamos para casa. Antibióticos, vitaminas e medicação para evitar trombose. Seguimos tudo e o cansaço tornou-se aparente. A orientação era voltar para consultar em dois dias, assim fizemos, pois o cansaço merecia atenção.
Uma nova tomografia foi feita, a inflamação havia aumentado. Já era cerca de 75% dos pulmões comprometidos, fez-se necessária a internação. Lembro que liguei para o meu pai, avisando que seguiríamos dali para o hospital. Ele brigou, disse que ela não ia voltar e que eu não devia levá-la para internação. Confesso que me questionei muito se devia prosseguir, mas ela disse que iria para ficar boa logo e voltar para casa.
“No hospital, um enfermeiro a conduziu. Lembro que meu mundo desabou quando ele me disse: pode se despedir dela. Aquilo soou tão incômodo e frio.”
Assim seguimos, enquanto aguardávamos, sua saturação caiu e entraram com o oxigênio. Eu não conseguia entender como a saturação havia caído tanto num curto espaço de tempo. Na ambulância, indo ao hospital, estava aparentemente tranquila, talvez para me tranquilizar. Eu brinquei que iríamos posar para o hospital com a plaquinha, “eu venci a Covid”.
No hospital, um enfermeiro a conduziu. Lembro que meu mundo desabou quando ele me disse: pode se despedir dela. Aquilo soou tão incômodo e frio, pedi a ela que não se desesperasse, que não se concentrasse nas cenas que poderia ver e que se algo ruim ocorresse, fechasse os olhos. Ela subiu para a UTI.
“Depois daquela chamada, eu só a queria comigo, de qualquer forma, e pedi a Deus: me devolva a minha mãe de qualquer jeito.”
Dois dias após muita falta de informação permitiram uma chamada de vídeo. Senti que ela estava cansando, conversamos pouco. A máscara de ventilação fazia muito barulho e o esforço tinha que ser maior. Me despedi para que descansasse. A insegurança me conduzia. Tudo era incerto. Meus filhos começaram uma novena pela sua recuperação junto da outra avó. Desejavam e confiavam na sua recuperação.
Na quinta-feira, nos permitiram outra chamada de vídeo. Era meu aniversário. Ela conversou conosco, viu os netos e três sobrinhos pelo telefone. Me deu os parabéns, cobrou da minha sogra o bolo de aniversário da minha filha que faria aniversário dois dias depois e falou que ali faltava uma “coquinha”. Sugeri, então, que desligássemos, a máscara estava na sua capacidade máxima e ela demonstrava cansaço. Depois daquela chamada, eu só a queria comigo, de qualquer forma, e pedi a Deus: me devolva a minha mãe de qualquer jeito. Eu aguento, mas me devolva!
“Havia sido entubada, não fomos avisados e não pediram autorização. Senti tanto, não sabia se ela havia sentido medo…”
No dia seguinte tentei fazer uma chamada de manhã, mas ninguém respondia. Fiz várias outras tentativas, sem sucesso. Meu coração doía, um desconforto bateu forte. Nunca senti aquilo, que dia pequeno para a ansiedade que eu sentia, me atenderam às16h20, informando que havia sido entubada por volta das 07h00. Não fomos avisados e não pediram autorização. Senti tanto, não sabia se ela havia sentido medo e se queria passar por isso, não teve a chance de escolher ou falar comigo antes.
Meu mundo caiu, eu desabei. Chorava e dizia para os meus filhos que ali tudo acabava. Meu marido logo veio ao meu encontro, mas nada amenizava a minha dor, a sensação era de perda, solidão, fraqueza e impotência. Eu não sabia como dizer ao meu pai, informar sobre a dimensão do agravo do estado de saúde dela. Ele ficaria muito mal…
“Fui acordada com uma ligação que já dizia tudo, que eu deveria comparecer ao hospital para falarem sobre ela. Eu já sabia!”
A noite chegou e eu não conseguia dormir. Lembro que as 3h00 da manhã fiz algo que nunca havia feito, rezei o terço da misericórdia e, então, mudei meu pedido, pedi a Deus que fizesse o melhor para ela, era uma pessoa muito viva, ativa, disposta e incansável. Disse a ele que não a deixasse inválida ou dependente de ninguém, ela sofreria muito. Consegui cochilar.
Fui acordada com uma ligação que já dizia tudo, que eu deveria comparecer ao hospital para falarem sobre ela. Eu já sabia! Eu sentia que ela não estava mais aqui, ao chegar esperei muito para falarem comigo, justificaram o seu falecimento em razão de uma parada cardiorrespiratória.
“Não houve velório e meus filhos não se despediram. Meu pai não se despediu. Toda uma vida sem o adeus.”
Perguntaram se eu iria reconhecer seu corpo, inicialmente respondi não. A revolta tomou conta de mim. Como eu ia explicar para os meus filhos que ela havia nos deixado? Como eu podia dizer que o amor maior da vida deles havia partido? Eu não sabia pensar. Meu marido então me disse para fazermos o reconhecimento, nos despedirmos e agradecer e, assim fizemos. Foi o momento mais triste da minha vida. Falamos sobre nossa gratidão por ter nos cuidado e aos nossos dois filhos, João e Maria.
Não houve velório e meus filhos não se despediram. Meu pai não se despediu. Toda uma vida sem o adeus. A tristeza tomou conta de mim e ainda tinha que estar com meu pai e com meus filhos sem nada a oferecer, eu só tinha condições de chorar junto. A notícia precisava ser dada. Que momento cruel. Eu estava avisando que a minha mãe não voltaria para a casa, que ali tudo acabara. Nenhum filho merece passar por essa dor.
“Não pude ficar com ela, não pude pegar na sua mão quando teve medo. Hoje tenho uma imensa saudade. Uma saudade que dói, não ameniza e que chora.”
Resolvi tudo com o apoio do meu marido. Minha mãe faria tudo por mim. Éramos uma pela outra e eu não pude fazer nada. Não pude ficar com ela, não pude pegar na sua mão quando teve medo. Ela não pôde sentir o carinho do João, a quem chamava de príncipe, nem da Maria, a sua princesa.
Ali perdi minha mãe para a Covid. Perdi memórias, carinho, lealdade e todo o amparo e assistência que ela nos proporcionava. Perdi parte da minha história. Hoje tenho uma imensa saudade. Uma saudade que dói, não ameniza e que chora.
“Tenho tanto orgulho da mulher que minha mãe foi e lamento pelos que não fizeram questão de estar com ela durante sua vida.”
Sofro, ainda, pelo distanciamento, por não estar com ela na hora de sua partida. Ela se foi só e eu não estava lá ao menos para demonstrar o meu amor e minha gratidão.
Tenho tanto orgulho da mulher que minha mãe foi e lamento pelos que não fizeram questão de estar com ela durante sua vida. Ela era muita luz, vigor e alegria. Foi a avó que não desperdiçou nenhum momento junto dos netos. Viveu o amor deles de forma intensa. Estavam sempre juntos, deixava qualquer coisa para estar com eles e, assim, me ajudou como ninguém fez. Foi uma esposa paciente, resiliente e forte, foi a sogra amiga, defendia o genro!
“Esquecê-la não está em nossos planos.”
Quanta vontade tinha de viver! Gostava das suas orquídeas e do mar! Sonhava com a formatura dos netos. Dizia que dançaria até a festa acabar.
A Covid a tirou de nós. Esquecê-la não está em nossos planos. Sempre que a saudade aperta mais um pouco falamos, lembramos, sentimos falta e choramos. Eu, João e Maria nos amparamos e nos fortalecemos nessa dor, que não passa e que é nossa.”
Mãe, Lu, Gaguinha, Luzia, como você faz falta todos os dias! Nosso amor transcende e jamais acabará.
(Autoria: Vanessa Carraro)
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