Filha, você faz parte da imensidão…

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Thais, Clara, o cometa. A passagem rápida. O peso, o lugar sombrio e escuro, o alagadiço de tristeza. As cinzas, o mar. Nadar ou voar, fazer parte da imensidão. O sonho, as borboletas, s roupinhas, o cheiro. As pazes com Deus. Clara esteve. Clara está. Assim é, assim deve ser, assim merece ser, para sempre.

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“As memórias que a gente tem, são mais percepções e sentimentos do que realidade.”

O ano era 1986. Tinha 5 anos de idade, em breve, haveria um evento super esperado: a passagem do cometa Halley. Caso eu esteja viva, na próxima vez que ele passar, eu terei 80 anos. Meus pais, que me levaram para vê-lo não estarão. As memórias que a gente tem, são mais percepções e sentimentos do que realidade.

Eu me lembro de algumas coisas, aos cinco anos, queria muito ver o cometa. E lembro que fomos, no entanto, não lembro de tê-lo visto. Lembro do sentimento de algo grandioso, único, incrível, memorável. Do dia mesmo, nada me lembro. Perguntei para minha mãe, e ela disse: “Fomos no pico do Jaraguá para ver. Seu irmão não devia ter mais que dois anos. Seu tio e primo estavam junto. Chegando lá, muitos carros, muita gente. Não vimos nada, fomos embora.”

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“Em 2017, com 34 semanas de gestação, Clara morreu. Assim eu senti: um peso, um lugar sombrio e escuro, um alagadiço de tristeza.”

Nessa mesma época, eu aprendia a ler e escrever. E desde então comecei a tomar gosto pela leitura. E escrita. E todo esse vasto universo que as palavras trazem consigo. Lembro de um livro. Falava sobre um menino tímido que sofria bullying na escola. Assim como eu. História dele e de sua bisa, que via com os olhos do coração. Em um projeto da escola, ele construiu uma maquete do cometa Halley, para que ela pudesse tocá-lo pois não teria a oportunidade de vê-lo. Tão bonito e delicado, tão tocante…lembro de ter sido o primeiro livro que me emocionou de verdade.

Em 2017, com 34 semanas de gestação, Clara morreu. Eu hesitei agora, ia dizer perdi, mas não está perdida, está desde o dia 10/04/2017…morta. E sim, é um choque e um peso muito grande escolher essa palavra. Assim eu senti: um peso, um lugar sombrio e escuro, um alagadiço de tristeza.

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“Assim como o cometa, Clara foi esse tipo de acontecimento: rápido, e que a gente fica lá semanas e semanas sentadinha esperando.”

Costumava ir à uma loja de bolos quando estava grávida. Ao voltar, não grávida, a atendente perguntou com um largo sorriso: E aí, nasceu? É menino ou menina? O horror, “não, ela morreu”. Assim mesmo. Curto, com ponto final e tudo que um ponto final significa. Falei sem querer falar, no meio de um sorriso de desespero, sem querer nem acreditar, querendo catar as palavras de volta e engolir. Baixei a cabeça e saí de lá. Nunca mais voltei.

Assim como o cometa, Clara foi esse tipo de acontecimento: rápido, e que a gente fica lá semanas e semanas sentadinha esperando. Aquela expectativa, aqueles pontos de interrogação do que está por vir, as borboletas no estômago. Não somente eu, muitas pessoas a esperavam. Ela tinha o pai, tinha já três irmãos. Todo, em uníssono, na mesma espera. E na hora do espetáculo, nada…

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“No meu aniversário, naquele mesmo ano, fomos levar suas cinzas para o mar para que ela pudesse voar. Ou nadar.”

Sei que pouquíssimas pessoas conseguiram ver o cometa. Assim como Clara. Eu a vi, eu a segurei por alguns momentos. Poucos, e nunca seria o suficiente. Mas sabe, quando ela veio para meu colo, senti o calor do seu corpo frágil. Antes que ele fosse embora, deixei ir Junto com ela mais uma porção de coisas e certezas. Já não sabia de nada.

Clara, o piano não tocado. O leite derramado. O presente extraviado. Então, no meu aniversário, naquele mesmo ano, fomos levar suas cinzas para o mar para que ela pudesse voar. Ou nadar. Imagina só, fazer parte do mar. Você segura aquele punhado de amor com as mãos, e ele escorre por entre os dedos…

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“Antes de entregar as últimas roupinhas as segurei nos braços, como se pudesse materializar sua presença ali.”

Nesse dia vi muitas borboletas amarelas, na verdade, as vi todos os dias durante essa viagem porque nossos olhos procuram o que o coração anseia. Alguns anos depois, dei as roupinhas que ficaram. Estava em dúvida, na verdade. Um dia antes sonhei com ela. Sua voz me disse: você não precisa disso para lembrar de mim, e você sabe disso. Não estou aqui, mas em todo lugar.

Antes de entregar as últimas roupinhas as segurei nos braços, como se pudesse materializar sua presença ali. Afundei meu nariz e ainda senti um cheirinho de amaciante de bebê. Ou assim eu me lembro. Ali me despedi dela mais uma vez.

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“Fiz as pazes com Deus, quando entendi que ele não pôde salvar ela, mas estava comigo o tempo todo.”

Com o tempo parei de ver as borboletas amarelas, mas eu penso nela todos os dias e já não choro com revolta e fúria. Fiz as pazes com Deus, quando entendi que ele não pôde salvar ela, mas estava comigo o tempo todo. Porque a vida é esse emaranhado de coisas. Pessoas, encontros e partidas. Amores, despedida.

Assim como o cometa Halley, não sei onde Clara está. Mas ambos continuam sua jornada. Não importa onde, mas estão. São. Assim como aquele livro infantil, aprendi a fechar os olhos e ver com os olhos do coração. Para sentir a imensidão da vida de perto, viemos para o mar. Para honrar sua passagem iremos sempre, para sempre, te celebrar.

(Autoria: Thais Silva Neves Moreno)

@thaisnmoreno

@lacoselutos_

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