Ana e o pai. O afastamento por anos. A falta. A reaproximação, o pai de volta. Nunca mais se afastaram. Mãos entrelaçadas, a generosidade da vida para que pudessem partilhar a vida. O câncer, a morte do tio paterno, o AVC isquêmico, os nódulos. A suspeita de Covid, não confirmado, a impossibilidade da despedida. Ana ainda precisava do pai, das suas ligações, do apartamento com seu cheiro. Na saudade a presença do pai, cuidando, sempre. Assim é, assim deve ser, assim merece ser, para sempre.
“No meu aniversário, meu pai era o primeiro a me ligar. Aquele primeiro aniversário logo após a morte, foi cruel e o mais doloroso de toda a minha vida.”
“Meu amado pai, Werno Hugo Arend, partiu em 19/12/20, aos 59 anos. Meu aniversário seria 21/12. Meu pai era o primeiro a me ligar e dar parabéns. Aquele primeiro aniversário, logo após a morte, foi cruel e o mais doloroso de toda a minha vida. Eu esperava que ele tivesse alta e pudesse estar em casa.
Meu pai sempre foi muito trabalhador, criado no interior, jovem, veio para a cidade trabalhar. Ajudou os irmãos mais novos, já órfãos de mãe, falecida aos 57 anos, também de câncer, a serem alguém na vida. Aprendeu a profissão de funileiro e junto, atuava como ferreiro, conhecimento adquirido do seu pai. Era um dos melhores profissionais da área de funilaria, sem modéstia. Ensinou a profissão aos irmãos, que também seguiram e seguem até hoje. Ele dizia que queria trabalhar até os 80 anos. Ficar parado não era com ele.
“Foram anos em que não tivemos a relação que eu gostaria, de pai e filha…minha mãe disse a ele que eu sentia muito a sua falta. Dali em diante tudo mudou.”
Meus pais ficaram casados por 19 anos, até que o casamento chegou ao fim. Apesar de ser uma ótima pessoa, o alcoolismo dele foi o motivo. Foram algumas tentativas frustradas de largar o álcool, até que o fundo do poço chegou. Ali, meu pai percebeu que precisava de ajuda e fazer um tratamento para largar essa doença que o destruía. Fez tratamento e acompanhamento no AA por muitos anos. Graças a Deus e a força que ele teve, o álcool ficou no passado.
Foram anos em que não tivemos a relação que eu gostaria, de pai e filha. Após alguns meses sem nos falarmos, eu já em depressão, nos encontramos na rua e minha mãe disse a ele que eu sentia muito a sua falta. Dali em diante tudo mudou. Deus nos deu uma segunda chance, e nunca mais nos afastamos. Eram almoços, telefonemas, lanches, passeios. Ficamos muito próximos. Eu tive meu pai de volta.
“Eu estive presente em todos os momentos. Nunca larguei a sua mão.”
Em 2013 o câncer chegou. Um nódulo no pulmão, maligno, meu pai era fumante, ali começamos a primeira batalha. Cirurgia particular, pois na época não tinha pelo SUS em nossa cidade, depois tratamento com radioterapia. O exame de petscan nos trouxe um alívio, estava tudo sob controle.
Em 2018, confirmou-se um outro nódulo, nos limites cirúrgicos da cirurgia anterior. Fomos à luta novamente. Eu estive presente em todos os momentos. Nunca larguei a sua mão. Mais uma cirurgia, dessa vez bem mais delicada, e quimioterapia, para garantir que nenhum nódulo tivesse escapado para a corrente sanguínea. Em dezembro de 2018 chegava ao fim mais um tratamento e tudo sob controle novamente.
“Em 07/2020 meu pai perdeu seu irmão mais novo, estava com uma doença crônica há alguns anos. Meu pai ficou muito abalado com essa perda.”
Meu pai havia comprado um apartamento, perto de onde moro com minha mãe. Ficamos mais próximos ainda. Fez carteira de motorista com 55 anos e comprou uma moto. Estava mais feliz que nunca. Tudo indo certo. E 2020 chegou nos trazendo a pandemia de covid 19. Eu acabei ficando em home office, meu pai continuava trabalhando, mas devido ao medo de nos infectarmos, nos víamos menos, falando mais por ligações. Eu sempre preocupada que ele pudesse pegar o vírus.
Em 07/2020 meu pai perdeu seu irmão mais novo, estava com uma doença crônica há alguns anos. Meu pai ficou muito abalado com essa perda. O ano de 2020 seria muito especial, faria 60 anos e tinha o desejo de juntar a família para comemorar essa data mas, em meio à pandemia e com a morte do irmão, teve depressão. Eu segui dando forças a ele. Era necessário seguir em frente.
Meu pai estava tendo um AVC isquêmico… no dia seguinte veio a notícia que tirou o meu chão. Ele estava com duas lesões cerebrais, tumores…”
No dia 18/10/20 ele me ligou, estava desnorteado, não falava coisa com coisa, corri até o apartamento. Vi que não estava bem e chamei um irmão para irmos ao médico. Algo estranho estava acontecendo. Fomos a UPA e de lá já nos transferiram para a emergência do hospital. Meu pai estava tendo um AVC isquêmico. Foram feitos exames e no dia seguinte veio a notícia que tirou o meu chão. Ele estava com duas lesões cerebrais, tumores, em dois locais diferentes e sem indicação de cirurgia. A chance era a radioterapia. Eu não conseguia acreditar.
Apesar do acontecido, meu pai não ficou com sequelas motoras. Teve alta hospitalar e eu me mudei para seu apartamento. Não podia mais ficar sozinho, várias medicações para tomar. Segui trabalhando de lá e o acompanhava nas radios.
“Para me abalar mais ainda, o hospital considerou meu pai suspeito de Covid. Eu não pude me despedir no velório.”
Em novembro, no exame de rotina de pulmão, outra má notícia, câncer no pulmão, recidiva. Entrou em cuidados paliativos. Eu seguia com fé, não podia aceitar que o câncer estava fazendo isso com meu pai. Não com ele! Merecíamos ficar mais anos juntos, eu ainda precisava dele.
Fez apenas uma sessão de quimio, sua imunidade baixou muito, uma infecção se instalou e em três dias partiu, na madrugada de 19/12. Para me abalar mais ainda, o hospital considerou meu pai suspeito de Covid. Eu não pude me despedir no velório. O exame chegou dias depois, negativo.
“A saudade é imensa, saudade que me sufoca, que dói. Ver o apartamento vazio, o telefone sem as chamadas dele, é difícil demais.”
Eu sei que se meu pai ficasse mais tempo o câncer seria cruel com ele. Eu o ouvi dizer muitas vezes que não gostaria de passar pelo sofrimento que a mãe passou, eu não poderia ser egoísta.
Eu vivo um dia de cada vez, precisei de terapia para conseguir lidar com a dor. A saudade é imensa, saudade que me sufoca, que dói. Ver o apartamento vazio, o telefone sem as chamadas dele, é difícil demais. Ele cuida de mim lá de cima. A presença dele é sentida em todos os momentos. Enquanto eu viver, ele estará vivo em mim.”
(Autoria: Ana Paula Arend, filha, para sempre, do Werno)
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