Filho, queria te guardar dentro do meu abraço…

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Quezia e Gabriel. O nascimento de um filho. O nascimento de uma mãe. O primeiro amor, mágico, único. Tanto amor que a voz virava sussurro, o sorriso trazia a primavera. Um acidente, o sanduiche que não aconteceu, a chegada das lágrimas, do vazio e da saudade. A dor é tanta que procura caminhos – ansiedade, depressão, fibromialgia. A busca por ajuda. O desejo de mais um filho, outro luto. Um caminho de dor, mas o amor resiste, Gabriel vai morar em cada pedacinho de Quezia, um filho não parte, retorna para dentro. Assim é, assim merece ser, assim deve ser. Para sempre.

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“Meu anjo Gabriel, como o próprio nome já significa, foi enviado por Deus para me ensinar o que era esse tal de amor de mãe.”

“Eu sou Quezia, mãe de Gabriel, falecido em 09/11/20. Gabriel foi o meu primeiro amor. O ser humano que veio para a terra com a missão de me transformar numa pessoa melhor. Foi com ele que descobri que podemos amar muito mais alguém do que a nós mesmas. Um filho faz isso, e o primeiro é sempre especial, é mágico, é único.

Gabriel foi calmaria em toda a sua vida. Sua voz era um sussurro suave ao pé do ouvido; seu sorriso, um amanhecer alegre e preguiçoso de primavera. Falar sobre Gabriel é falar de amor: quantas pessoas tiveram suas vidas marcadas pela vida do meu anjo. Meu anjo Gabriel, como o próprio nome já significa, foi enviado por Deus para me ensinar o que era esse tal de amor de mãe.

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“Saíram de carro em direção a um trailer de sanduíches, mas jamais chegaram nesse local…o carro perdeu o controle e bateu em um poste, num impacto violento e insano.”

Gabriel tinha 21 anos quando partiu. Era um lindo rapaz, cheio de sonhos. Estudante de Engenharia Mecânica, amava cálculos, jogos de videogame e futebol americano. Era super tímido, principalmente com as meninas. Sua vida tinha tanta vida pela frente até aquela madrugada de segunda-feira.

Depois de um dia “domingando” das 16h às 4h da madrugada, ele e mais dois primos, todos regados de muito álcool, saíram de carro em direção a um trailer de sanduíches, mas jamais chegaram nesse local. Na mesma avenida da festa, o carro perdeu o controle e bateu em um poste, num impacto violento e insano.

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“Aquele impacto foi tão forte que o estraçalhou por dentro, teve hemorragia interna e faleceu ainda dentro da ambulância do SAMU.”

A violência da imprudência, a violência do álcool na direção de automóveis. Todos estavam sem cinto de segurança. Os dois primos que sentavam nos bancos da frente foram arremessados no chão, mas não sofreram nenhuma fratura. Meu filho, contudo, não teve a mesma sorte: seu corpo foi jogado no vidro traseiro do carro, mas ficou preso pelo abdômen. Aquele impacto foi tão forte que o estraçalhou por dentro, teve hemorragia interna e faleceu ainda dentro da ambulância do SAMU.

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“Ver gente era um sofrimento, porque todos que me viam só sabiam chorar ou dizer alguma coisa sem sentido.”

Desde aquele dia, eu tento sobreviver da forma que dá, através de várias estratégias e a maioria delas não recomendo a nenhuma mãe enlutada. Inicialmente, me tranquei dentro de mim. Meu quarto era meu mundo; as pessoas que tentavam se aproximar eram expelidas como perigosos alienígenas. Ver gente era um sofrimento, porque todos que me viam só sabiam chorar ou dizer alguma coisa sem sentido. Aquela dor era só minha e eu não sabia como dividi-la com ninguém.

Fui uma menina muito independente (desde cedo, me virei sozinha, graças à “liberdade” da minha mãe). Eu não sabia o que era ser cuidada; só fui apresentada ao verbo CUIDAR e quando alguém tentava me dar colo, eu afastava.

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“E a insônia, e a saudade, e a tristeza, e a raiva, e o medo, e a culpa… quantos fantasmas me assombravam! Como conseguiria dormir? Impossível.”

Passaram-se uns cinco meses e eu decidi sair do meu campo de força. Fui ver o mundo e comecei a trabalhar exaustivamente com redes sociais e influência digital para passar o tempo. Eu precisava burlar a dor. Precisava enganar as memórias mórbidas que tentavam me assombrar, então, durante o dia eu me fantasiava de mulher forte e corajosa, me pintava de mãe consolada e ia fugir do meu mundo.

Me escondia nas telas das redes sociais – ali quando as lágrimas caiam, eu podia virar a câmera para trás para ninguém ver meu sofrimento. Mas sabe qual o problema dessa minha segunda estratégia? A fuga só funcionava durante o dia; à noite, no entanto, a dor vinha no atacado. E a insônia, e a saudade, e a tristeza, e a raiva, e o medo, e a culpa… quantos fantasmas me assombravam! Como conseguiria dormir? Impossível. Então veio a insônia crônica. E as várias tentativas de vencer a guerra contra ela: chás, florais, meditação… nada resolvia.

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“Quase dois anos após um luto escondido, como uma ferida que se abafa, eu apodreci por dentro. Crise de ansiedade e depressão, dores crônicas, ressonâncias, mais exames, fibromialgia…”

Até que em 08/ 2022, quase dois anos após um luto escondido, como uma ferida que se abafa, eu apodreci por dentro. Crise de ansiedade e depressão, dores crônicas, ressonâncias, mais exames até o diagnóstico: fibromialgia. Em setembro de 2022, finalmente, comecei a fazer terapia. Pela primeira vez, me deixei cair, ser frágil, chorar, ter medo, ser cuidada por alguém…

Afastei-me do trabalho, enquanto tentava aproximar-me dos amigos que eu mesmo repeli. Comecei a me dopar de remédios tarja pretas: para dormir, para acordar, para não chorar, para não ter dor…Tentei fazer várias coisas para evitar a sensação de inutilidade pela fibromialgia, mas a exaustão e as dores no corpo e na alma derrubavam todos os meus sonhos.

img_4586“A ferida do luto ia sarando, mas, em contrapartida, a saudade aumentava. O que fazer? Decidi deixar meu filho vivo em cada pedacinho da minha vida.”

A ferida do luto ia sarando, mas, em contrapartida, a saudade aumentava. O que fazer? Decidi deixar meu filho vivo em cada pedacinho da minha vida: na nossa casa, no meu computador, no meu celular, nas minhas redes sociais, nos eventos da família, no seu aniversário: em tudo ele está presente, no meu coração e na minha memória. Vivi assim até 06/2023, quando senti o desejo de ser mãe pela quarta vez ano (tenho mais dois meninos: Eduardo, 21 anos, e Gustavo, 10 anos).

Esse sonho, me encorajou a cuidar mais de mim: fui a todos os médicos que me acompanhavam (psiquiatra, reumatologista, neurologista, ginecologista e psicóloga) e eles foram passando o desmame das medicações. O meu sonho ia renascendo… até que em 08 de janeiro recebi meu presente: teste positivo. Senti novamente uma alegria que não sabia mais ser possível de sentir. Mas a alegria acabou hoje, em 30/01; hoje pela manhã sofri um aborto. Vivo hoje mais um luto – esse, porém, recheado de esperança. Tentarei de novo, e de novo, e de novo…Não se trata de substituir meu Biel. Jamais.

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“Depois, iria até sua cama, deitaria ao teu lado, te agarraria num abraço de urso e te encheria de beijos, te acordando com um perfume de felicidade.”

Cada filho é único e insubstituível. O meu amor por meu menino anjo está guardado numa caixinha, que guardo para abrir em ocasiões especiais. O que quero somente é colorir a casa mais uma vez, trazer a alegria e o milagre da vida brotando em meu ventre e em nossos corações. E assim serei mãe de cinco (porque o meu bebê anjo que partiu hoje também já tem a sua caixinha de amor reservada unicamente para ele – ou ela).”

“Queria ter acordado cedo, preparado um café da manhã especial, repleto de gostosuras para você, meu Bibis: suco de uva, queijo, presunto, bolo de chocolate, frutas, cuscuz quentinho e ovo frito na manteiga – e tudo temperado com muito amor. Queria arrumar a mesa com direito a souplats, guardanapos de tecido, arranjos de flores decorados com toda a minha admiração por você, depois, iria até sua cama, deitaria ao teu lado, te agarraria num abraço de urso e te encheria de beijos, te acordando com um perfume de felicidade.

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“E no final do dia, queria te guardar dentro do meu abraço, para nunca mais te perder. Em vez dos sorrisos, as lágrimas; em vez do abraço, o vazio; em vez da festa, a saudade”

Hoje eu queria te ver sentado naquela mesa arrumada especialmente para você, meu filho. Queria ver seu sorriso, queria ouvir suas piadas bestas e rir muito delas. No almoço, queria te levar num rodízio (você amava) e te ver comer churrasco, sushi, lasanha, macarrão, escondidinho e tudo o que você tivesse vontade.

Queria te roubar a tarde inteira para passearmos no shopping e te deixar escolher o presente que você sonhasse: um celular novo, um controle de vídeo game. De sobremesa, sorvete coberto com calda de amizade.

Queria convidar todos os seus amigos do futebol, do trabalho, da faculdade, da Castro Alves, da família – juntar todos os que te amavam – para te homenagear em vida .

E no final do dia, queria te guardar dentro do meu abraço, para nunca mais te perder. Queria tanto celebrar o dia de hoje, mas o que resta são as memórias. Em vez dos sorrisos, as lágrimas; em vez do abraço, o vazio; em vez da festa, a saudade. (18/01/24 – 24 anos da sua chegada”

(Autoria: Quezia Carneiro)

@queocarneiro

@lacoselutos_

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