Erica e a mãe. A maternagem, o chocolate que não chegou. A moto, o adeus. Erica reaprende a viver, “tudo dói, tudo é novo de novo”. Um amor tão imenso que permanece na gratidão aprendida, nos traços físicos, no amor que transcende, o arroz, a lição sobre as feridas, o cheiro nas roupas. Sua mãe fica porque amor não morre. Assim é, assim deve ser, assim merece ser, para sempre.
“A primeira pergunta que me fiz foi como se vive no mundo sem mãe, como se houvesse uma receita pronta para um órfão.”
“Sou Erica, filha de Eliana. Minha mãe saiu para comprar um chocolate para mim e foi atropelada por uma moto (imprudência do motorista). Foi socorrida, passou por cirurgias e veio a falecer três dias após o atropelamento, em 17/08/22, aos 53 anos.
Experienciar a vida com a senhora foi doce, foi leve e intenso, a forma mais pura de amor. Nunca me imaginei no mundo sem a senhora, nunca imaginei como fosse viver sem mãe. A primeira pergunta que me fiz foi como se vive no mundo sem mãe, como se houvesse uma receita pronta para um órfão. Já li e ouvi bastante, que a boa mãe é aquela que se faz desnecessária com o tempo, nunca entendi o porquê, inundada do seu amor me sentia completa, cheia. Você nunca ia ser desnecessária! Bom entendi a frase vivendo-a em carne viva. Eu a interpretei de verdade, agora. A senhora não se fez desnecessária, mas me encaminhou todo esse tempo para que eu sobrevivesse nesse mundo sem você.
“Hoje tudo dói, como se tudo que eu faço fosse novo de novo.”
Às vezes me pego perguntando se todo esse tempo foi um preparo, ah se pudesse, só mais cinco minutinhos de prosa, para te perguntar se estou indo bem? Ressignificar nossa relação sem sua presença física, é um desafio constante que me tornou mais humana ainda, tenho mais compaixão, tento ouvir muito mais o outro e não julgar.
Hoje tudo dói, como se tudo que eu faço fosse novo de novo. Aquele dia que você se foi, a Erica que eu conhecia se foi também, como se eu tivesse ressuscitado para uma nova vida, agora órfã de mãe.
Momentos de alegria e conquista nunca são plenos porque falta você para compartilhar, momentos de tristeza são mais difíceis ainda porque não tenho seu colo para me consolar. Chorar de saudade é uma mistura também de gratidão pelos nossos 28 anos de vida juntas.
“Não, o chocolate não chegou, naquela noite de sábado amarga, mas a doçura do seu amor, sim.”
O luto tem sido doloroso, silencioso e, principalmente, tem sido uma escola sobre como ressignificar esse amor, que não morre junto de quem amamos. Vivo nesse mix de emoções, mas sinto a cada dia que passa que nosso amor transcendeu e foi além! Isso me conforta na maioria dos dias, saber que pude viver sendo tão amada e cuidada por você, exceto aqueles dias onde o peito aperta, dá um nó na garganta, uma sensação de irrealidade, o vazio toma conta e o sentido vai embora.
Escolhi ser grata, mamãe, foi uma dádiva ser a última pessoa a conversar com a senhora, foi uma dádiva que sua última tentativa de fazer algo em vida foi maternar, indo comprar aquele chocolate pra mim, quase deu tempo, eu vi o vídeo, faltava pouquinho para terminar de atravessar a rua. Não, o chocolate não chegou, naquela noite de sábado amarga, mas a doçura do seu amor, sim. A senhora suportou 78 horas ainda, lutou pela sua vida, pelos seus amores e deu um tempinho pra gente ir assimilando o que estava por vir, quanto amor, quanta gratidão por essas horas.
“O sentimento que mais prevalece é o de gratidão, a saudade aperta, amarga, mas olho no espelho e te vejo viva nos meus traços…”
Sinto um pouco de culpa, de não sentir revolta por sua morte, de ter aceitação, como se meu amor pela senhora fosse mensurado por isso. Mas minhas crenças não me deixam sentir isso. Acredito que a senhora tenha trilhado o seu caminho bem, e muito bem, aqui e, como nós todos, chegaria esse momento de sua ida.
O sentimento que mais prevalece é o de gratidão, a saudade aperta, amarga, mas olho no espelho e te vejo viva nos meus traços, quando vou fazer o arroz lembro de você me ensinando o passo a passo quando eu tinha só dez anos. Quando vou corrigir meus filhos e os ouço antes de falar, lembro quando a senhora fazia exatamente assim comigo. Quando tento me tornar cada vez mais humana, ouço sempre a sua voz dizendo “filha a vida não é assim, você tem que ter mais calma com as pessoas.”
“Quando a saudade aperta faço uma prece, cheiro a última roupa que minha mãe vestiu, me aproximo mais dos meus filhos, do meu pai e do meu irmão.”
A frase que é mais dolorida e que me faz lutar pra ressignificar a forma como a senhora partiu “prefiro ser a pessoa ferida, do que ferir alguém”. Só assim consegui perdoar a pessoa que tirou a sua vida por imprudência. A senhora foi a pessoa ferida, a que morreu. E eu não vou ser a que vai ferir alguém, seja com palavras ou atitudes, porque estou ferida. Escolhi o perdão e nele você vive, meu amor. Deu certo, deu tudo certo, mamãe. A sua memória segue sendo honrada no meu coração, do único jeito que a senhora me ensinou a olhar pro mundo, com amor. Que a fé do reencontro, me faça feliz e confiante!
Quando a saudade aperta faço uma prece, cheiro a última roupa que minha mãe vestiu, me aproximo mais dos meus filhos, do meu pai e do meu irmão. Tento dar amor aos que ficaram.”
Autoria: Erica Gonçalves
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