Meu filho: desmontando uma casa inteira…

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Um filho, a casa recém-montada, o sorriso, os sonhos. Uma mãe, a dor, as louças na pia, o almoço no domingo que não acontece, a planta, o cheiro no xampu. A permissão para entrar nos lugares sagrados desse filho. O amor fica, diariamente, na planta regada cotidianamente, nos olhos que contam sobre os sonhos dele “sempre que passo, olho para a janela do quarto andar e imagino ele ali, e lembro da sua felicidade, do seu sorriso, da sua amorosidade e generosidade.” Um filho, fica, para sempre, assim é, assim deve ser.

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“Quando perdi meu filho, ele tinha 24 anos e morava sozinho. Estava combinando com um amigo naquela semana de dividirem o apartamento.”

“Quando perdi meu filho, ele tinha 24 anos e morava sozinho. Estava combinando com um amigo naquela semana de dividirem o apartamento. Um grande amigo… Quando fomos chamados de madrugada, começou meu pesadelo. Foram cinco dias de UTI até ser constatada a morte cerebral… Velório…. enterro… sofrimento e incredulidade.

Ele havia recém montado aquele apartamentinho com muito carinho e muito entusiasmo. Estava vibrando por dar início ao voo solo, e eu, feliz da vida por ele. Ajudei a montar, compramos plantas, ele pegou emprestado alguns móveis de amigos, fez um quebra-cabeças com o que tinha disponível e estava tudo lindo, não só pela beleza em si, mas pelo que aquela mudança significava para nós, especialmente para ele, claro.

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“A primeira vez que entrei lá, ainda tinha na pia a louça do jantar de comemoração, a comida que restou e a bagunça que ele deixou… Tudo ainda parecia vivo por ali, só ele não estava.”

Na noite anterior ao atropelamento, horas antes, ele tinha oferecido um jantar para um professor muito querido e mais dois amigos. Era o primeiro jantar que ele havia feito, já que ele gostava de cozinhar e, segundo os convidados, estava uma delícia. Ainda segundo os convidados, ele estava que era só sorrisos e feliz por todos os poros. Soube depois por eles, que o Vitor puxou algumas vezes um brinde “à vida”!!

E agora? O que fazer com tudo aquilo que havia acabado de ser montado com tanto carinho e alegria?? O apartamento era alugado, e como estávamos totalmente desnorteados, resolvemos pagar um aluguel a mais para termos um tempo de fôlego e decidirmos o que fazer.

A primeira vez que entrei lá, ainda tinha na pia a louça do jantar de comemoração, a comida que restou e a bagunça que ele deixou… Tudo ainda parecia vivo por ali, só ele não estava.

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“Nos demos as mãos e pedimos licença a ele para mexer em tudo, esvaziar os armários, as gavetas, as coisas do banheiro… meu Deus… eu só chorava e ia me desculpando pela invasão.”

Tinha que tirar tudo dali e não tinha a menor ideia de como e nem por onde começar. Decidi começar acendendo uma vela, um incenso e agradecendo por tudo, pedindo licença e me desculpando por ter que desmontar tudo que ele havia acabado de fazer. Estava com meus outros dois filhos e mais dois amigos, que sempre estiveram ao nosso lado. Nos demos as mãos e pedimos licença a ele para mexer em tudo, esvaziar os armários, as gavetas, as coisas do banheiro… meu Deus… eu só chorava e ia me desculpando pela invasão.

Sim, eu me sentia invadindo a privacidade dele, buscando em todos os cantos objetos, papéis, tudo… que sensação horrível de estar mexendo no que não era meu. Cada minuto era um ” com licença” seguido de uma “desculpa, filho”. E o que fazer com tudo aquilo? Estava completamente perdida.

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“A planta que eu trouxe vive até hoje na minha casa, dez anos depois, firme, forte e exuberante. Ela vive aqui comigo, cuido dela com muito carinho e representa pra mim a presença permanente dele. Vivo!!”

Resolvi começar a separar por partes: uma parte era o que eu devolveria para quem havia emprestado, a outra eu daria de presente como lembrança para os amigos mais queridos. A maior parte das coisas eu resolvi doar para uma instituição de caridade, alguns objetos pessoais e as plantas que nós havíamos comprado juntos resolvi trazer pra mim, outros objetos foram escolhidos como lembrança pelos irmãos.

A planta que eu trouxe vive até hoje na minha casa, dez anos depois, firme, forte e exuberante. Ela vive aqui comigo, cuido dela com muito carinho e representa pra mim a presença permanente dele. Vivo!! Fiquei, também, com uma batedeira que era o xodó dele e que eu uso até hoje, e me sinto junto dele quando vou fazer uma receita que ele certamente adoraria fazer.

Difícil demais. Cada peça tinha o cheiro dele e carregava uma parte da sua história. Ah, fiquei também com um xampu, recém-aberto, e até hoje se eu fecho os olhos consigo sentir o seu cheiro.

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“Percebo hoje que todo esse meu esforço e também dos meus outros dois filhos foi uma forma de eu ir realizando a ideia de que ele nunca mais entraria ali, que eu nunca mais o veria… “

Aquilo ia me dilacerando o coração e eu tinha que fazer, não tinha escolha. Foram vários dias de trabalho e muitas lágrimas, muitas desculpas e muitos pedidos de licença. A cada dia eu me sentia exausta e vazia. Foi uma tarefa interminável e avassaladora.

Percebo hoje que todo esse meu esforço e também dos meus outros dois filhos foi uma forma de eu ir realizando a ideia de que ele nunca mais entraria ali, que eu nunca mais o veria e que o almoço que estava marcado comigo, para aquele domingo, nunca iria acontecer… Cada coisa que eu separava parecia dizer pra mim que a morte dele era real e que ele nunca mais estaria ali.

Desmontar a casa dele foi o pontapé inicial de uma longa jornada de luto e elaboração. Hoje olho pra trás e me pergunto como foi que eu consegui. Não sei responder e não entendo de onde saiu essa minha determinação e coragem. Sinto que tive que buscar em mim os caquinhos da minha alma para conseguir, sinto também que tudo isso de certa forma me deixou um pouquinho mais corajosa, porque me senti muito forte por ter conseguido.

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“As coisas dele estão espalhadas por aí, com pessoas conhecidas e, muitas, desconhecidas. Pra mim é como se ele também continuasse em muitos lugares, com muita gente, do jeitinho que ele gostava de viver.”

As cartas, os papéis, os bilhetes, as fotos, as intimidades, nada disso eu mexi. Pus tudo dentro de uma caixa e guardo até hoje, intactos. Até agora eu não sei o que fazer com elas. Essa, pra mim, foi a parte mais difícil.

Hoje eu acho que fiz o que tinha que ser feito, não sei se adiar teria me ajudado, acho que não. Depois de tudo vazio, me despedi daquele lugar tão especial pra nunca mais voltar. Passo na frente do prédio com frequência, porque faz parte do meu caminho. Sempre que passo, olho para a janela do quarto andar e imagino ele ali, e lembro da sua felicidade, do seu sorriso, da sua amorosidade e generosidade.

As coisas dele estão espalhadas por aí, com pessoas conhecidas e, muitas, desconhecidas. Pra mim é como se ele também continuasse em muitos lugares, com muita gente, do jeitinho que ele gostava de viver.”

(Autoria: Gladys Ajzenberg, mãe eterna do Vitor)

@lacoselutos_

@gladysajzenberg

2 Comentários

  1. Chorei muito lendo esse relato. Eu vivo uma situação parecida há quase 7 meses perdi meu namorado, passei 14 anos com ele…até hoje eu não tive coragem de desfazer o ap. Ele viveu durante 9 anos nesse apartamento, ele era do PR e estava morando na BA por.minha causa, o irmão dele veio conhecer o ap levou alguns objetos e me deixou com a responsabilidade de desfazer, mas é tão difícil desfazer de um lugar que eu ajudei a montar, cada objeto tem uma história nossa, tem o jeito dele, tbm não tenho coragem de pedi que alguém faça isso por mim. Tenho lembranças da vida dele ali, da nossa vida e da morte dele ali…ele teve um mal súbito e eu o encontrei sem vida deitado na cama. Até hoje eu me pergunto como tive força naquele momento.

  2. Cris Albuquerque

    Nossa! Chorei tanto, mais tanto agora com essa história desmontando a casa. Muito igual com minha história com meu irmão. Eu e meu esposo tivemos que fazer isso. Caramba muito doloroso! Pedia desculpas e licença o tempo todo e nos sentíamos muito mal invadindo a privacidade dele. Sei lá, mais ao mesmo tempo sabiamos que se ele fosse escolher alguém para essa missão seriamos nós dois! Tá tudo tão recente. Três meses. As plantas estão lindas, vivas e viçosas como ele era! Saudades eternas do meu amor, meu irmão.

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